— Floresceu!
Aquelas palavras abacadrábicas parecem ter sido pronunciadas como uma espécie de senha. Hortelina fitara a natureza, ao derredor, com olhos baços e distantes, num desses janeiros chuvosos, depois do ressequido e implacável bê-erre-o-bró e deixou escapar aquela palavra, pausadamente, sílaba por sílaba, quase como uma prece. O certo é que, depois daquele dia e daquela citação algo solene, uma inesperada revolução aconteceu na vida de Hortelina. Os últimos dois anos tinham sido pesados e tortuosos. Cada amanhecer trazia consigo sua carga inesgotável de dissabores e atropelos. A sensação que a mocinha percebia era a de que comera o caju saboroso e doce da existência e, chegando ao finalzinho, sorvia o travo que lhe punha a língua em carne viva.
Vivera um casamento de Conto de Fadas por mais de vinte anos. Cristovaldo, o marido, um notário, dera-lhe uma vida tranquila e confortável. Tiveram um amor de adolescência, de princípio devastador e incendiário, mas que se manteve arrefecido, por brasas de amizade e respeito, quando os ventos da idade já não alimentaram tanto as chamas e elas começaram a perder o vigor de outrora. Hortelina e Cristovaldo eram inseparáveis e o sentimento que os unia transparecia reciprocidade. Nunca se soube de aventuras do nosso tabelião, todos que o conheciam eram unânimes em dizer que jamais “mijara fora do caco”. Vieram três filhos, criados neste ninho acolhedor, que, crescidos, como bons nordestinos, levantaram voo em busca do Shangri-lá do Sul. Biblicamente, Cristovaldo e Hortelina resolveram envelhecer com o parceiro da juventude e mantiveram-se juntos, como se untados em Araldite, até que, há uns dois anos, chegou o visitante inesperado. Sem aviso, sem altercações, levou Cristovaldo para aquele acerto final de contas, untado em nada, aspergido em pó.
Impossível avaliar o imenso impacto que a perda despejou em cima da pobre Hortelina. Viúva, fechou-se para o mundo. Enclausurou-se, saindo eventualmente para as missas do domingo. Amigas mais próximas tentaram ajudar, aproximaram-se, tentaram demovê-la daquele luto pesado: em vão. Imaginaram-na depressiva e contavam, como favas contadas, que mais dia, menos dia, Hortelina iria encontrar com seu amor eterno, quebrando a inexorabilidade do contrato nupcial do “até que a morte os separe!”. Hortelina manteve-se inflexível até, exatamente, aquele janeiro em que fitou o horizonte e, de olhos brilhantes, citou a senha da ressureição: “Floresceu!”
O certo é que , após aquele Abre-te-Sésamo, a vida de Hortelina virou de ponta cabeça. Tomou um banho de loja, refez o cabelo e a maquiagem, remasterizou as amizades, agora cercando-se com mocinhas solteiras e ariscas. Passou a ser fichinha carimbada de festas e bailes e pôs-se a trocar de namorados, como trocava de roupas e acessórios. Aquela mudança súbita e tão radical chocou amigos e conhecidos. “Endoidou!” “Vamos ser viúva alegre, mas assim já é demais!” “O pobre do Cristovaldo deve está estrebuchando na cova!” Estes eram os comentários que se ouviam nas pontas de rua. O velho Zeferino Seabra, estupefato com a transformação de Hortelina, comentou um dia com a esposa:
— Matilde, se eu adivinhasse que, morrendo, tu ficava feliz como essa Hortelina, eu juro por Deus, mulher, eu me suicidava!
Ninguém conseguiu entender aquela mudança súbita e abrupta, do vinagre ao vinho, na vida de Hortelina. Um dia ela confidenciou a uma das novas amigas. Tristonha, depressiva, solitária, naquele dia, na calçada do casarão, pôs-se a contemplar a natureza. Com tantos meses de estio, o marmeleiro tinha desde agosto, despido-se da sua folhagem. A paisagem acinzentara-se, com galhos estendendo-se aos céus, como em prece por melhores tempos. Com as primeiras chuvas, no entanto, vira naquele dia, as árvores vestirem, novamente, o mais lindo vestido verde e explodirem em flores brancas para o himeneu que já se prenunciava. Hortelina, enquanto se arrumava para sair com a amiga, explicou, então, as forças da sua metamorfose:
— Percebi que, como a natureza, a vida tem suas estações. Vivi um longo verão com Cristovaldo. De repente, um outono e um inverno glacial tomaram conta da minha alma. Os marmeleiros me ensinaram, novamente, a arte do despojamento e, depois, do reflorescer. Primaverei!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri