Ortega Y Gasset, o maior filósofo espanhol do Século XX, no seu livro “Meditações do Quixote”, faz-nos uma pergunta enigmática: — Com quantas árvores se faz uma floresta? Ele então lembra que à sua frente existem duas dezenas de árvores, aquilo pode se considerar uma floresta? Ele conclui: claro que não, estas são apenas as árvores que ele consegue enxergar de uma possível floresta. A floresta verdadeira se compõe das árvores que ele não vê. A floresta é uma entidade invisível. Se se pegar uma vereda qualquer, parte da floresta que então se via, vai se diluindo, substituída por outras paisagens e outras árvores. A floresta foge aos olhos. A floresta está sempre um pouco além de onde estamos, ela é sempre uma possibilidade. Aquela que se encontra diante de nós, a qualquer momento, é apenas o pretexto para que o mais se encontre oculto e distante. A invisibilidade, o ocultar-se é, embora não aparente, uma qualidade positiva que ao verter-se sobre uma coisa faz dela uma coisa nova. A floresta é o latente enquanto tal.
Este espaço que aqui hoje ocupamos, para essa celebração, chamamos de Parque Municipal, mas um dia foi um bosque, com um lago encantado e um pequeno zoológico. Pois foi aqui, bem além do Bosque e do Parque que ora avistamos que, nos anos 70-80, brotou, principalmente, na área cultural, num desses mistérios típicos dos bosque, um intenso movimento de Contracultura. Jovens estudantes, bafejados pelas ondas liberalizantes de Maio de 68; de Woodstock; dos Hippies; do anticoncepcional e da disseminação das drogas e oprimidos, por outro lado, pela Ditadura Militar; sentiu-se, essa juventude, tocada na sua criatividade, investindo contra a institucionalizada e centenária Cultura caririense.
O Teatro investiu-se de novas linguagens, através dos movimentos estudantis, despertando nomes como Ronaldo Correia Lima, Francisco de Assis Souza Lima, Luiz Carlos Salatiel, José do Vale Filho, Renato Dantas, Gil Grangeiro. Encenaram-se Brecht, Ariano Suassuna e peças de cunho mais autoral. O Cinema trouxe nomes, alguns ainda hoje fortíssimos no cenário nacional, como Rosemberg Cariri, Jéfferson Albuquerque, Hermano Penna, José Hélder Martins, Jackson Bantim. Nas Artes Plásticas brotaram: Stênio Diniz, Luiz Karimai, Normando, Edélson Diniz, Janjão e muitos outros. Na Música: Abidoral e Pachelly Jamacaru, Luiz Carlos Salatiel, Thiago Araripe, João do Crato, Luiz Fidelis, Zé Nilton e Heládio Figueiredo, Cleivan Paiva. A Literatura nos brindou com: Ronaldo Brito, Francisco de Assis Souza Lima, Emérson Monteiro, J. Flávio Vieira, Roberto Jamacaru, Everaldo Norões, Xico Sá e Geraldo Urano. Todos estes artistas e tantos outros se conglomeraram em jornais como “Vanguarda” e “Flor de Pequi”; em publicações como “Cariri Jovem 68 e 69”; nas dez edições dos “Festivais da Canção do Cariri”; nos “Salões de Outubro”, no “Grupo de Artes Por Exemplo”, no “Xá de Flor”.
E, do olho deste furacão, foi cuspido o poeta mais icônico de toda essa louca geração: Geraldo Urano, ou Mérkur, ou Batista, ou Efe. Multiplanetário, poligaláctico, Geraldo é o mais importante bardo caririense dos últimos cinquenta anos. Mais que ninguém, ele captou este multifacetado período histórico, pleno de enormes incongruências, de contrastes incontáveis, onde todas as chagas da civilização ficaram imediatamente expostas e era preciso mudar tudo e mudar rápido. Sua poética foi única: sem data, sem fronteiras geográficas ou políticas, perpassada por uma fina e doce ironia. Os primeiros rudimentos do Tropicalismo em terras cearenses saíram de suas performances nos nossos primeiros Festivais. Urano, num dos seus movimentos de translação, recluso, por muitos anos por conta de doença, ele, mais que nunca, provou que a Arte é capaz de quebrar os cadeados de qualquer cativeiro. Publicou dois livros antológicos (“Vagalumes” e o “Belo e a Fera”; e um cordel, hoje esgotados). Suas letras foram musicadas por incontáveis parceiros: Abidoral, Pachelly, Luiz Carlos Salatiel, Cleivan Paiva, Calazans Callou. É dele a letra do principal hino deste período: “Lua de Oslo”.
A Turma do Parque foi nosso Clube da Esquina e influenciou as gerações que se seguiram, abrindo horizontes, ensinando o fazer artesanal da Arte, mesmo diante de todas as barreiras e vicissitudes. Foi nossa Semana de Arte Moderna, cinquenta anos depois de 1922. O Bosque, como a floresta de Gasset, tinha lá seus enigmas e mistérios e, principalmente, apesar de parecer rudimentar no seu nascedouro, era apenas a latência enquanto tal. Ela foi apenas um pretexto para o que viria adiante: uma avalanche de criatividade que, como um tsunami, revolveu as teias de aranha e bolores e o fazer artístico no Cariri, desnudo, revestiu-se de novas roupas, folhagens e cores.
Neste momento celebramos o Bosque que parece não mais existir, mas seus galhos, flores e frutos espalham-se como uma hera por todas as encostas do país. Porque o Bosque, amigos, é justamente a floresta que não se consegue ver, ele está sempre adiante da nossa percepção. É que o essencial, como a floresta, sempre foge aos olhos.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
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