Nem só de notícias ruins se alimentam os noticiários. Em ano de peste, de choro e asfixia, semana passada, brotou uma dessas manchetes que, no meio do sufoco nosso de cada dia, oxigena o Cariri. O Conselho Superior Universitário da URCA aprovou, por unanimidade, o projeto de criação do curso de Medicina em Crato. De forma célere, agora, seguindo os tortuosos caminhos burocráticos, o projeto deve passar, já neste mês de março, pelo juízo do Conselho Estadual de Educação. Prevê-se o primeiro vestibular já o próximo semestre deste 2021. Como sói acontecer, sempre, em tais situações, estas decisões carregam consigo sua carga inexorável de polêmicas. O Crato teria recursos humanos suficientes para abarcar um Curso de Medicina? Já não existem faculdades demais no estado, no país e no nosso entorno? O Curso de Medicina abalaria a estrutura dos outros cursos da Universidade? Isso tudo não é só uma jogada eleitoreira? A Faculdade de Medicina teria a qualificação necessária? A sede preliminar, o Seminário São José, tem estrutura adequada?
Todas estas perguntas serão respondidas facilmente, com o andar da caravana. Como sempre, nada nasce perfeito e teremos que ir, fazendo consertos e ajustes, enquanto a nossa carruagem vai andando. O certo é que , com a Faculdade de Medicina, o Crato dá uma guinada histórica. Otimizaremos a ciência médica na região, teremos um superávit científico inimaginável, retornaremos a ser um centro de saberes e disseminador de educação no Ceará. E o nosso Seminário São José, não estranhará o novo curso, já funcionou como hospital, historicamente, nas epidemias de 1878 (varíola) e peste bubônica nos anos 30. No meio da euforia, não devemos, no entanto, esquecer os principais benfeitores desta causa: o governador Camilo Santana, o prefeito José Ailton Brasil, o Reitor Dr Lima Júnior, os articuladores do projeto: Dr. Cláudio Glaidiston e Dr. Marcos Bezerra da Cunha.
A notícia alvissareira aparece, estrategicamente, próximo ao dia 8 de Maio, o dia dedicado às mulheres. É inevitável aqui, lembrar o nome da médica cratense Dra. Amélia Bénebien Pérouse e o seu pioneirismo. Nascida em 1860, na Bebida Nova, Amélia se formaria em Salvador em 1890. Seria a segunda mulher a colar grau naquela Faculdade. Antecedeu-a apenas a gaúcha Rita Lobato Lopes a primeira brasileira aqui formada. Muito provavelmente, Amélia foi a primeira mulher nordestina a tornar-se médica. Imaginem a saga bravia dessa cratense em deslocar-se para a capital da Bahia, em lombo de burro, em pontão e trem, na segunda metade do Século XIX. Não se pode esquecer que só a partir de 1879 permitiu-se o ingresso feminino no estudo das artes médicas aqui no Brasil. Devemos ao seu pioneirismo e à sua clarividência a abertura da nossa arte para tantas e tantas fabulosas profissionais que a seguiram e que hoje já são maioria na Medicina brasileira. Mulheres grandiosas que por uma determinação típica de gênero traziam consigo, desde o berço, os mistérios e a força da arte de cuidar.
Bénebien radicou-se em Salvador, mas, no início do Século XX, montou consultório em Crato, sendo comprovadamente a primeira mulher a instalar consultório no Ceará. Fez-se, também, a primeira a realizar anestesia aqui no nosso estado.
Amélia nos deixaria, aos 93 anos, em 1953. Sua casa, em Salvador funcionava como uma embaixada do Crato e lá acolheu outros parentes que lhe seguiram os passos na mesma arte: Dr. Dalmir Peixoto, Dr. Dario Peixoto, Dra. Josefina Peixoto. Hoje, em outra dimensão, em paz, deve-se cobrir de novas graças ao saber que seus conterrâneos já não precisarão, como desbravadores, vararem os sertões, em busca das artes e ensinamentos hipocráticos. Graças a visionárias como ela, beberão da nova bebida, bem próximo a sua Bebida Nova, aprenderão os mistérios da Arte de Curar, ao doce som das águas do Rio Grangeiro , sob a brisa que sopra por entre as árvores do Sítio Fundão.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
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