Hoje, exatamente neste instante, a mesma mesa, os pássaros — acho que são os mesmos —, a paisagem, a mesma. O calor tomando conta, o almoço já está pronto, mas perdi a fome num estalo. Queria ler por algumas horas a poesia da menina de cabelos cacheados, que deve escrever como a sua neurodivergência: cheia de intervalos e com escritas invisíveis. Talvez fosse a dopamina da tarde, o vinho para desequilibrar as certezas.
Converso com a enfermeira, que fala de feridas de difícil cicatrização. Lembrei-me de Eduardo Galeano: “As Veias Abertas da América Latina”.
Manu manda uma mensagem avisando sobre a tia doente e justificando os porquês de ainda não ter vindo deixar os livros. Ela vai viajar, trabalhar onde são discutidos os rumos do país. Guardo dela alguns sorrisos e desculpas para adiar o fim do mundo.
A enfermeira manda alguns podcasts sobre curativos da vida, enquanto aprendo a fazer o ponto final. E, se não aprender, terei feridas abertas, pouco menores que a América Latina.
A barriga parece um tambor que é batido e não faz som. Escrevo como quem toma Rivotril para aliviar o peso que não se mede pelo peso. A poesia da menina de cabelos cacheados ainda não chegou — deve estar vendo as águas passarem. Resta apagar as últimas fotos, mas a memória é um combustível que queima. Haverá dias de girassóis, mas é preciso plantar.
Por Alexandre Lucas. Pedagogo, artista, educador e integrante do Coletivo Camaradas
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor, e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri