O recado veio pela mocinha que trabalha no Posto de Saúde lá do Cipó dos Tomás. Arionildo recebeu-o meio desconfiado: era esmola grande demais para cuia do cego. Devia comparecer no posto, no dia seguinte, para tomar a vacina da moléstia da gripe que já tinha matado sem fôlego meio mundo de gente ali no Cipó e arredores. E a mocinha ainda alertou: botasse sebo nas canelas e fosse que ele, já beirando os oitenta, já estava mais pra lá do que pra cá e se pegasse o defluxo é certo que iria comer capim pela raiz. Sabia que velho é o bicho mais arriscoso que existe, uma espécie de azougue para tudo quanto é de coisa ruim. E ainda tinha um agravante: trata-se, em seu caso, de velho pobre: se caísse doente sempre faltaria alguma coisa: ou médico, ou hospital, ou UTI, ou oxigênio, ou coveiro, ou cova.
Acordou cedinho, com a barra ainda quebrando. Saiu pela estrada amanhecente, com o cheiro de marmeleiro escorrendo pelas veredas e o canto buliçoso dos passarinhos saudando a aurora. Começou a discutir com seus botões: valia a pena tomar a danada da vacina? Coisa de graça, mandada pelo governo parecia um chamado oficial para o cheirinho do queijo. Não seria uma maneira de se livrar da velharia e botar a mão nos aposentos da turma do cipó mole? Viu-se, enquanto engolia a estrada poeirenta, entre a cruz e a peixeira. Se ficasse, a gripe vinha; se corresse o governo pegava. Decidiu, constrangido, pelo apelo da agente de saúde: entre a morte agoniada, sem fôlego, da Covid era melhor a outra, também programada por Brasília, ao menos esta vinha a prestação: em módicas incúrias mensais.
Tomada a decisão, bateu-lhe outro desassossego. O presidente tinha dito que quem tem tomasse a danada da vacina viraria jacaré. Que seria dele, naquelas brenhas, investido, agora, das sutilezas e necessidades de um lagarto? Não existia água, nem lagoas por ali, açudes ou barreiros na maior parte do ano. Sentiu-se como um crocodilo no Pantanal incendiado. Se ao menos pudesse optar por outro réptil: um calango, uma lagartixa, um bico doce… Ou até um teju, mais fácil de se adaptar naquelas terras ressequidas na maior parte do ano e com alimento farto saltitando em locas de pedras. Além de tudo, com uma vantagem a mais: cego como alguns eleitores diante das urnas.
Em meio ao temor, uma série de pressentimentos, rápido apareceu. Pareciam avisos anunciatórios da tragédia por vir. Romildo, seu irmão, ganhou no jogo do bicho na semana anterior com a dezena 57: Jacaré. Ontem mesmo encontrara na feira com um dos mais antigos casais da região Cremilda e Ioneda e Arionildo ainda era daquele tempo antigo que achava que mulher com mulher dava jacaré.
Tremendo, aflito, recebeu a picada no braço esquerdo, no postinho do Cipó dos Tomás. Voltou para casa com uma sensação estranha. Uma vontade estranha de comer peixe e dar uma rabanada nos cobradores.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri