O Brasil vive hoje a peripatética do crime, das transgressões tangenciais e da absolvição imediata da mentira. É muito significativa a forma gestual como essa prática é organizada na sociedade brasileira, os párias têm o poder da fala oficial e assim fazem a transmutação do dolo em serventia nacional e do descaramento em código de ética institucional, amplamente aceito pela maioria, não pelo consentimento inconsciente, mas justamente pela falta de um álibi que possa garantir o distanciamento dessa culpabilidade. O mascaramento da delinquência faz parte da invenção das práticas públicas brasileiras, bem como a inocência ultrajada fundamenta a indolência da vida privada.
Existe um fragmento de frase de Hanna Arendt, em seu livro “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalização do mal”, que se revela como a tradução da indignidade político governamental. Ela escreve na página 28: “Uma coisa é desentocar criminosos e assassinos de seus esconderijos, outra é encontrá-los importantes e prósperos no âmbito público (…)”. Nessa obra monumental Arendt comenta a coisificação humana na operacionalidade ideológica do crime, quando o executor vira o funcionário que acredita e segue as ordens, apenas isso: a honestidade da hierarquia. Vale ressaltar que Adolf Eichmann é um dos maiores carrascos nazistas na execução da “Solução Final”, operação que exterminou milhões de judeus nos campos de concentração nazistas.
Quando o mais recente ministro da educação nomeado no Diário Oficial, Carlos Decotelli, indicado pela ostensiva ala militarizada do governo, é flagrado com um currículo recheado de títulos falsos, muitos acreditam que o bombardeio da imprensa é a desconstrução da maldade. No entanto, o que se presencia é a construção sólida da criminalidade oficial. Quando a fraude e o plágio são tratados como “deslizes”; “descuidos”; “equívocos”; “inconsistências”; ou “inadequações”, o que se tem é a certeza de que a bandidagem é uma força organizadora, é uma supremacia da degeneração da índole. Quando o presidente, simplesmente o presidente, afirma categoricamente que existe “essas coisas aí de currículo, mas que todos dizem que ele é bom no que faz, não vejo problema”, o que se tem é a certeza da banalização da criminalidade oficial.
Não deveria existir descaso por se tratar de mais um crime cometido, seja em grande ou pequena escala, pelo governo atual. Mas existe. O presidente, simplesmente o presidente, fraudou a data da demissão de Weintraub no Diário Oficial, para mascarar a facilitação da fuga do ex-ministro, mas não ex-bandido. O STF ficou calado, pleno em seu descaso. Dizem que mandou investigar, mas investigar no Brasil é igual a mastigar, engole que passa e o povo esquece. Não deveria existir descaso por se tratar do ministério da educação, a pasta responsável pela estruturação do pensamento crítico de brasileiros e brasileiras. Mas existe. O que não existe é um intenso pensamento crítico no sistema nacional de educação. Se isso existe, não é suficiente em sua dosagem ou foi privatizado pelos interesses privados. Quantos e quantos são doutores no Brasil, sem doutorado. Quantos e quantos profissionais liberais compraram suas vagas nas universidades. São inúmeras teses com fraudes e plágios que serviram e servem como ferramentas operacionais de funcionários padrão.
Não é um sintoma o ministério da educação e a educação em si abrigarem tantos bandidos, é a causa do propósito. Esvaziar o pensamento crítico parece ser a “Solução Final” para exterminar a esquerda no Brasil, daí operadores honestos com a hierarquia ideológica. Ricardo Vélez e Abraham Weintraub foram ministros da educação e são professores universitários no setor privado. Ambos são racistas e defendem a privatização do ensino e sempre atacaram as universidades públicas, bem como defendem a escolaridade só para ricos. Vélez disse que a ideia de universidade para todos não existe, ela é destinada a uma elite intelectual. O outro bandido, Weintraub, enquanto ministro da educação, simplesmente da educação, disse: “Eu, como brasileiro, eu quero ter mais médico, mais enfermeiro, mais engenheiro, mais dentistas. Eu não quero mais sociólogo, antropólogo, não quero mais filósofo com o meu dinheiro”. Essa é uma referência à transformação social do ensino público. Um claro combate aos “equívocos” e aos “deslizes”, da guerra contra as desigualdades sociais.
Carlos Decotelli é oficial de reserva da Marinha e se gaba de mais de vinte anos como professor universitário, incluindo aí a Escola de Guerra Naval. Como militar e não como economista, ele foi presidente de fevereiro até outubro do ano passado do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão ligado ao MEC e que agora está nas mãos do centrão, em negociata do presidente, que prometeu jamais fazer qualquer acordo com os bandidos do centrão. Em sua breve gestão um dos programas priorizados na época pelo fundo, o Educação Conectada, ganhou as manchetes quando a Controladoria-Geral da União encontrou inconsistências em um edital de R$ 3 bilhões de um pregão para a compra de equipamentos de tecnologia educacional. Mas isso são apenas “inconsistências”, “inadequações”. É apenas a operacionalização de ensinamentos ideológicos.
Por Marcos Leonel – Escritor e cidadão do mundo
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri