O terremoto de hoje é de 7.2 na Escala Richter. E basta observar o Armagedon: alguns castelos de ilusões foram abaixo; edifícios que pareciam, antes, indestrutíveis ruíram aos primeiros tremores; sonhos despedaçaram-se sobre muitos escombros. Contemplando o horizonte, em meio ao entulho, vemos que, junto, muitos amigos e companheiros foram soterrados pelas camadas sedimentares do tempo. O cenário em que desfilei por tantos anos, como ator principal do meu “Esperando Godot”, desabou em meio aos tremores tectônicos. Cruzam nas ruas, agora, figuras espectrais esquisitas e que passam por mim, sem um cumprimento, como se fizessem parte de uma outra dimensão. Fica-me sempre a dúvida se sobrevivi ao abalo sísmico ou se sou apenas um fantasma peregrino, numa romaria em busca de um santo inexistente e uma hóstia que já não sangra. E, às vezes, me bate aquele dúvida penetrante: o verdadeiro desastre é sair ileso ou ser soterrado?
Sobreviver não nos tira o risco dos tsunamis secundários, significa apenas não ter soçobrado dessa vez. As placas tectônicas da vida, no entanto, continuam a deslizar umas sobre as outras, a calmaria que sucede à hecatombe é apenas a perspectiva inexorável do novo tremor de terra. Ele virá novamente, com a imprevisibilidade típica dos ritos essenciais, e, talvez, dessa vez eu já não seja sorteado. Serei apenas mais um aterrado pelas camadas estratificadas do senhor Tempo. Sobre mim serão construídas outras histórias e civilizações. Com sorte, num futuro longínquo, me tornarei um pedacinho de uma peça fossilífera de um arqueólogo curioso. Apenas um artefato sem nome e sem história — se o acaso me for cúmplice: esse dente siso pertenceu a um homem de 80 anos, provavelmente procedente do Século XX da era Cristã.
Baixados a poeira e o trauma do cataclismo é preciso, em meio à fumaça e ao pó (substância e essência de cada ser vivo), divisar um mundo possível e idílico. Reconstruir o castelo de areia, esquecendo a preamar. Juntar os amigos que ainda nos enxergam, revolver os escombros, construir com eles algumas barracas, acender a fogueira e comer a comida conforme ela é servida. A vida, afinal, é esse pouco que conseguimos desfrutar entre um e outro sismo.
Por J. Flávio Vieira. Médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
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