A noite do último domingo (22) foi de transtorno para uma engenheira de 27 anos que, nesta matéria, prefere não se identificar. Natural do município cearense de Jaguaribe, a mulher havia acabado de desembarcar em Fortaleza — após uma temporada de dois anos e meio em Curitiba (PR) — quando solicitou uma corrida via aplicativo de transporte.
O trajeto, com pouco mais de 9 quilômetros, ia do Terminal Rodoviário Engenheiro João Thomé, no Bairro de Fátima, até a nova casa da passageira, no bairro Mucuripe. A corrida durou somente 19 minutos, mas custou 100 vezes mais do que deveria. Ao invés de pagar R$ 18,06, conforme o recibo enviado pelo aplicativo 99 ao fim da corrida, foi debitado de sua conta R$ 1.806,00. E no nome de outra empresa.
A passageira diz ter conferido o valor correspondente à corrida na maquineta, mas a mensagem automática enviada pelo banco para o seu celular registrava o valor com dois dígitos a mais.
“O [app] 99 dá a opção de pagar na maquininha, em débito direto pro motorista. O valor da corrida deu R$ 18,06. Ele colocou lá [na maquineta] esse valor e perguntou pra mim se era em débito ou crédito. Quando eu respondi débito, logo ele pegou o celular na mão dele. Daí, eu digitei a senha”, relembra.
Ao saber que o pagamento seria no débito, o motorista “ficou me coagindo, dizendo: ‘Ah, digita logo a senha que eu preciso sair’. Aí eu digitei. Ele desceu as minhas malas e saiu bem rápido do local. Foi quando eu vi a mensagem do débito na minha conta”.
Sem resposta
Logo que recebeu a mensagem do banco no celular, a engenheira enviou várias mensagens ao motorista pelo próprio aplicativo, mas nenhuma delas foi respondida.
“Lá no aplicativo tem uma opção que quando você esquece alguma coisa no veículo ainda pode falar com o motorista depois. Eu entrei nessa opção, expliquei que ele tinha passado o valor errado, mas ele não me respondeu”.
Maquineta programada para debitar 100 vezes o valor
Em seguida, a vítima se dirigiu a uma delegacia, onde registrou um Boletim de Ocorrência (B.O.). Como as investigações do ocorrido ainda estão em andamento, a reportagem opta por não divulgar o nome do motorista para não atrapalhar o trabalho da polícia.
“Eu tenho certeza que eu chequei [a maquineta]. Na delegacia, disseram que pode acontecer de a maquineta estar programada pra fazer 100 vezes o valor e eu digitar achando que é o correto, mas quando debita vai outro valor”, soma a passageira.
Motorista procurado pela polícia
Em nota, a Polícia Civil do Ceará informou que o 9° Distrito Policial (DP) está à procura do motorista de aplicativo suspeito de aplicar o golpe. “A vítima já foi ouvida e equipes da delegacia distrital seguem em diligências. O órgão afirmou ainda que, “ao notificar os responsáveis pelo aplicativo, os policiais civis foram informados que a empresa não detém endereço de seus motoristas”.
Posicionamento da 99
Antes de ir à delegacia, a mulher também entrou em contato com a 99. Na ocasião, a empresa disse que não poderia ressarcir o prejuízo. Somente dar uma bonificação de R$ 50, que seria disponibilizada em até cinco dias úteis.
“Eu liguei várias vezes e o aplicativo disse que não podia fazer nada por mim porque eu realizei o pagamento direto com o motorista e ela não se responsabiliza. Falaram que não podiam bloquear o motorista porque ele não tinha feito nenhuma irregularidade no sistema deles”.
Após contato da reportagem, a assessoria de imprensa do aplicativo falou diretamente com a passageira por telefone e informou, via e-mail, que lamentava o ocorrido. Ainda solicitou o envio do B.O. e do extrato do débito em conta, bem como se dispôs a colaborar com a polícia nas investigações.
Condutor bloqueado
Em nota enviada ao Seu Direito, a 99 reiterou que “lamenta profundamente” o transtorno reportado pela passageira e disse que penalizou o motorista, tendo em vista que ele teve um comportamento que vai “contra os termos de uso da plataforma”. “Assim que tomamos conhecimento do caso, bloqueamos o condutor do aplicativo e mobilizamos uma equipe para oferecer o suporte necessário para a passageira”.
A empresa informou ainda que “consegue mapear, rastrear e agir em cima dos pagamentos feitos por meio do app, ou seja, quando o cartão está cadastrado para pagamento automático no sistema”.
Mas nos casos em que o “passageiro opta por pagar diretamente ao motorista, que é um profissional autônomo, dentro do carro, a companhia recomenda que ele verifique o valor da cobrança e se atente para qualquer alteração, como o faria em qualquer estabelecimento”, complementou.
A 99 foi questionada pela reportagem se a cliente será ressarcida e de que forma a empresa se responsabiliza pelos atos de seus motoristas, mas não obteve resposta.
Responsabilidade da empresa
Além da cobrança indevida, a vítima reclama de outros transtornos envolvendo o caso, como gastos para se deslocar à delegacia e para contratar o serviço de um advogado para orientá-la e representá-la perante a Justiça.
Mas, afinal de contas, de quem é a responsabilidade diante de casos como este?
Para o presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB Ceará, Thiago Fujita, a empresa que oferece o serviço de transporte é responsável pelo transtorno, tendo em vista que o “motorista estava, naquele momento, representando a empresa”.
Coordenador de processos e julgamentos do Procon Fortaleza, Sérgio Henrique Sales corrobora que a responsabilidade, neste caso, é da empresa.
“Existe uma responsabilidade da empresa que presta o serviço porque o consumidor não tem como saber quem está do outro lado [da tela], mas a empresa faz toda uma seleção quando estabelece pessoas pra trabalhar pra ela. A maquininha é dele [do motorista], mas ele presta um serviço para a empresa”.
Ressarcimento em dobro
Baseado no artigo 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), Fujita entende que houve uma cobrança indevida. Por isso, o valor ressarcido à passageira deve ser o dobro do que fora debitado em sua conta.
“O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável”, determina a lei.
Sales também considera que houve uma cobrança indevida. Em casos assim, recomenda ao consumidor que entre em contato contato com o Procon para “abrir uma reclamação em relação à empresa. Nós iremos chamar a empresa, o motorista e até a empresa da maquininha na qual foi passado o cartão”.
Para abrir a reclamação no Procon, o consumidor deve estar munido do documento de identidade, comprovante de residência, boletim de ocorrência – caso o tenha registrado, print do recibo gerado no aplicativo e um comprovante do extrato bancário ou fatura do cartão em que o valor indevido foi, respectivamente, debitado ou creditado.
“Luta” por direitos
Além de procurar um advogado de confiança para representá-la na Justiça e/ou perante os órgãos de defesa do consumidor, como Procon e Decon, o advogado recomenda à consumidora registrar sua reclamação no site consumidor.gov.br. As três alternativas recebem, inclusive, registros virtuais.
“Ela [a vítima] fez muito bem em registrar o B.O. de imediato. Agora, ela tem, de fato, que continuar nessa luta e tomar as medidas necessárias porque foi uma cobrança indevida. Realmente é um absurdo”, acrescenta Thiago Fujita.
Por Lígia Costa
Fonte: Diário do Nordeste