Em teve tempo de planejar a vida direito porque uma bala atravessou seu corpo e sua história, marcando um ponto final ali, onde era para ter só mais uma vírgula. A narrativa de crianças e adolescentes assassinados é dolorosa e se repetiu, pelo menos, 127 vezes no Ceará, de janeiro a outubro de 2019, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).
Ainda que nenhuma perda se justifique, o número representa uma redução de 64,6% nas mortes da população cearense entre 12 a 17 anos, quando comparado aos 359 casos registrados em igual período do ano passado.
A diminuição também está no radar do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA), que, por sua vez, considera o intervalo dos 10 aos 19 anos de idade. A entidade utiliza as informações da SSPDS para contabilização. Conforme os registros diários de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) da Pasta, ampliando a faixa, o número cresce para 185, de janeiro a outubro.
Queda
Passados dez meses de 2019, o número marca uma queda brusca em relação aos 829 homicídios de jovens ocorridos em todo o ano de 2018, e fica ainda mais distante dos 981 assassinatos da mesma faixa etária, em 2017. No ano anterior, 2016, quando o Comitê foi instalado, foram 655 casos. O CCPHA indica que, de 2011 a 2018, chegou a 7.251 o número de homicídios de meninos e meninas com menos de 20 anos no Estado.
Para o sociólogo e coordenador técnico do Comitê, Thiago Holanda, a redução pode estar relacionada à resposta do Estado à crescente de homicídios vivenciada até 2017. Ele aponta o policiamento mais ostensivo e a reorganização do Sistema Penitenciário, com reflexos diretos nos territórios influenciados por grupos criminosos, como fatores importantes para mudanças na dinâmica do crime no Ceará. Ainda assim, o sociólogo recomenda cautela.
“O que a gente não consegue avaliar é qual vai ser o efeito disso depois, se isso se sustenta. Desde 2014, a gente foi tendo uma queda. Em 2016, quando volta a matança, ela atinge sobretudo a juventude mais vulnerável: são jovens que estão fora da escola, ou tiveram passagem pelo socioeducativo, ou tiveram poucas oportunidades de trabalho”, explica, caracterizando as vítimas como “uma juventude de direitos negados”.
Quadro
O entendimento é reforçado pela advogada Julianne Melo, vice-presidente da Comissão Especial de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, da OAB-CE. “Apesar da redução, ainda não se pode dizer que ela é consistente, que ela pode perdurar. O Comitê tem uma série de recomendações para o estabelecimento de políticas públicas, de assistência social, educacionais, de saúde, que pudessem alterar esse quadro. Os vulneráveis a ameaças e à morte precisam de uma série de investimentos, notadamente orçamentários”, destaca.
As ausências são sentidas principalmente pela juventude periférica, segundo Dudu Souza, integrante do coletivo e produtora VetinFlix. “Tem muito de acharem que a juventude entra na criminalidade porque quer. A maioria, quando cai, é por falta de opção, de estrutura. A juventude periférica é esquecida”, considera ele, que ajuda a produzir uma série para a internet em contraponto à imagem das favelas em outras narrativas televisivas.
“A criminalidade tem tudo a ver com a desigualdade. Se a criança tiver oportunidade, ela não vai entrar no crime. A solução pra violência não é a bala, é a oportunidade. Queremos passar pra juventude que eu sou ‘vetin’, falando como ‘vetin’, tô tendo oportunidade de expressar minha arte e nem por isso vou virar bandido. A série parece ser pesada, mas a nossa realidade é pesada”, afirma.
Classificação
Realidade essa investigada por Glória Diógenes, socióloga e coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus), da Universidade Federal do Ceará (UFC), com 150 jovens do Grande Bom Jardim classificados comumente como “nem-nem-nem”: que não estudam, trabalham ou demonstram interesse em retomar a escola ou buscar uma ocupação. Contudo, a partir das entrevistas, ela percebeu que, na verdade, eles são “muito ocupados e mal classificados”.
“Se a gente pergunta se eles estão trabalhando, eles dizem que não. Mas se pergunta se eles tem algum ‘trampo’, eles dizem que sim”, resume. A lista inclui trabalhos em feira, lavagem de roupas e carros, venda de cosméticos e marmitas, costura, cuidados de idosos e serviços gerais. “A primeira coisa é rediscutir o estigma que paira sobre esses jovens, que chamamos de ‘geração N’, em vez de ‘nem-nem-nem’, porque eles dizem ‘não’ ao ‘não’ que é imposto a eles”, reflete Glória.
Conforme a pesquisadora, 72% dos entrevistados declararam que gostariam de voltar à escola, e 80%, que têm vontade de trabalhar. “Mas que trabalho? Os principais interesses deles fogem de uma carreira linear, e se adere a uma ideia de projeto. Eles sonham em ser pequenos empreendedores”, conta. “No aspecto preventivo, a primeira coisa que as políticas públicas deveriam fazer era escutar esses jovens para entender o que eles querem, o que eles podem, o que sabem, e, daí potencializar outras soluções”, reflete.
Em nota, a SSPDS destacou que, além de ações de Segurança Pública, o Governo tem pensado em melhorias e construção de praças públicas, escolas e postos de saúde e a instalação de bases fixas do Programa de Proteção Territorial e Gestão de Riscos (Proteger) da Polícia Militar. Quanto ao fortalecimento do espaço escolar como fator de prevenção à violência, informa que o Estado prioriza a expansão das Escolas de Educação Profissional e de Tempo Integral.
Por Nícolas Paulino
Fonte: Diário do Nordeste