Há mais de dois meses, o montador de móveis Carlos José de Souza, de 39 anos, aguarda ser transferido para Fortaleza para passar pelo procedimento de reconstrução multiligamentar. Vítima de uma colisão de moto, em Juazeiro do Norte, chegou a ficar internado no Hospital Regional do Cariri (HRC) por cinco dias, onde passou por cirurgia. Seu caso contabiliza a infeliz estatística de acidentes de trânsito que cresceram nos seis primeiros meses deste ano, em comparação a 2020, nas principais cidades do interior do Estado e, também, nas rodovias estaduais.
À espera da nova operação na capital cearense, Carlos José não tem conseguido trabalhar e deve permanecer assim, segundo os médicos, por aproximadamente um ano e meio. “Não disseram nem o dia, nem o mês da cirurgia”, lamenta.
O impacto da batida, além de fraturar a perna direita, causou uma luxação e instabilidade nos ligamentos do joelho. Sem poder andar, acaba dependendo de cesta básicas de amigos para sobreviver. “Não vai ser fácil (esse período)”, completa.
De acordo com os dados da Polícia Rodoviária Estadual (PRE), de janeiro a junho deste ano, foram contabilizados 1.030 acidentes nas rodovias estaduais cearenses, que representa um aumento de 22,9% em relação ao mesmo período de 2020 com 838.
O número de mortes também teve importante aumento: 166 contra 146 nos seis primeiros meses do ano passado. Da mesma forma com a quantidade de feridos, que saiu de 525 para 630, em 2021.
Iguatu em alerta
Dos cinco municípios com população acima de 100 mil habitantes no interior, a cidade de Iguatu apresenta os números mais preocupantes. Até junho deste ano, já foram registrados 104 acidentes de trânsito, igualando o total ocorrido em todo o ano de 2020 com as mesmas 104 ocorrências. Além disso, se aproxima da quantidade ocorrida em 2019 (138), ano anterior à chegada da pandemia da Covid-19, quando a circulação de veículos era maior.
De acordo com o diretor de Trânsito e Transporte de Iguatu, Francisco Jackson Barbosa, a maioria dos acidentes são colisões entre motociclistas e carros ou queda de motos. Outra agravante tem sido à resistência ao uso de capacetes.
“Os números são muito preocupantes”, admite. A frota de veículos de Iguatu, segundo dados do Detran/CE, é de 54.406, tendo uma população com cerca de 103 mil pessoas. Ou seja, em média, 0,52 veículos/por habitante. Na prática, a cada dois iguatuenses, um possui um veículo particular.
Com o alerta causado pelo último semestre, Jackson conta que foi feito um mapeamento, tanto da zona rural como da urbana, dos locais onde houve o maior número de acidentes. “Daí, intensificamos o trabalho de fiscalização juntamente com o Detran e a Polícia Militar com a finalidade de diminuir estes números. Recentemente, fizemos blitz educativa e já estamos programando outra para este mês de julho”, antecipa.
Crescimento também em Itapipoca
Na região Norte do Estado, em Itapipoca, também houve um aumento no número de acidentes em 2021 em relação ao ano anterior. A Autarquia Municipal de Trânsito (AMTI) contabiliza 98 acidentes até junho, deste ano, enquanto em 2020, foram 69 ocorrências. Isso representa um aumento de 42%.
A quantidade deste ano ainda está um pouco abaixo do que a de 2019, período anterior à pandemia. Na ocasião, ocorreram 100 acidentes.
Segundo Paulo da Mota David, diretor de Estatística da AMTI, cerca de 80% dos acidentes são colisões entre veículos. Em menor número, acontecem atropelamentos e choques com objetos físicos.
“A maioria ainda sem vítimas. Com apenas danos materiais”, pondera. A frota de Itapipoca é de 41.973, enquanto sua população estimada é de 130 mil habitantes, representando uma média de 0,32 veículos por pessoa.
Para conter esse avanço, a AMTI tem apostado na educação através das redes sociais e das rádios locais. No maio amarelo, mês dedicado à segurança no trânsito, foram realizadas blitz educativas e repressivas.
Sobre o uso de capacete, David acredita que 98% dos condutores tem aderido. “Ainda têm aqueles que desobedecem. É tanto que ainda é a maior quantidade de autuações lançadas”, pontua.
Crato segue tendência das outras cidades
No Cariri cearense, a cidade de Crato, que possui cerca de 133 mil habitantes e 56.996 veículos registrados, também aparece com um aumento de acidentes, em 2021. Os dados de junho ainda não foram contabilizados, mas nos cinco primeiros meses já soma 96 registros. No mesmo período do ano passado, foram 69, um acréscimo de quase 40%. Por mudança no sistema, o Departamento Municipal de Trânsito (Demutran) ainda não recuperou as informações de 2019.
Apesar do aumento, o diretor do Demutran de Crato, Ricardo Regis Nascimento, enfatiza que a maior parte são colisões traseiras e laterais com apenas danos materiais, sendo 85%, envolvendo motocicletas e automóveis.
Para conter este avanço, tem realizado blitz educativas em conjunto com o Detran e fiscalização com apoio da Guarda Civil Metropolitana. “Ainda existe resistência ao uso de capacetes, principalmente em alguns bairros. No Centro, é raro”, pontua. Os três bairros mais comuns de ações são o Pantanal, Mutirão e Vila Lobo.
Juazeiro do Norte é a única cidade que registra queda
Maior cidade do interior do Estado, com cerca de 276 mil habitantes, Juazeiro do Norte possui a segunda maior frota de veículos do Estado, com 131.104 veículos registrados. Apesar do grande número, a terra do Padre Cícero tem apresentado uma tendência de queda nos últimos dois anos. Porém, assim como o Crato, os dados de junho ainda não foram contabilizados.
De janeiro a maio de 2019, antes da chegada da Covid-19, foram 220 acidentes registrados pelo Departamento Municipal de Trânsito de Juazeiro do Norte (Demutran). No ano seguinte, caiu para 138 ocorrências, representando uma queda de 37%. Já neste ano, outra queda mais sútil, com 136 acidentes apurados pelo órgão municipal.
O diretor do Demutran, Edinaldo Moura, observa que ainda é comum identificar a imprudência pela falta de capacete dos motociclistas ou de seus passageiros. Por isso, neste momento, está sendo focado no trabalho educativo.
“Em seguida, faremos uma fiscalização mais rígida”, antecipa. O setor de Educação e Estatística do departamento também projeta, apesar da queda, uma nova campanha educativa em parceria com o Detran. “Esperamos que os números continuem caindo. Por isso, vamos abordar para medidas preventivas”, completa.
Sobral teve alta de 8,5%
Na maior cidade da região Norte, Sobral, também registrou um aumento no número de acidentes no primeiro semestre. Foram 229 ocorrências este ano contra 2011, um crescimento de 8,5% neste período. Ainda assim, está abaixo de 2019, ano anterior a pandemia da Covid-19, onde ocorreram 288 acidentes.
O coordenador da Coordenadoria Municipal de Trânsito de Sobral (CMT), Julif Guedes, informou que o tipo de sinistros mais comuns são as colisões transversais. “A intensificação de fiscalização nos bairros e no Centro tem diminuído bastante o índice de desobediência ao não uso de capacetes”, acredita.
Em Sobral, ainda de acordo com o coordenador da CMT, a maioria das imprudências constatadas tem sido o excesso de velocidade acima de 20% da quilometragem permitida. Essa infração é registrada pela fiscalização eletrônica.
Já as multas aplicadas pelos agentes se dividem entre estacionamento em fila dupla e avanço do semáforo. Para contê-los, estão sendo ampliadas as ações educativas “em todo território”, garante Guedes. “Na zona rural e nos distritos possuímos equipes que fiscalizam o trânsito nestes locais, trazendo um maior ordenamento viário para essas áreas”, completa.
Contexto da pandemia
O professor da Universidade Federal do Cariri (UFCA), Ary Ferreira da Silva, doutor em Engenharia Civil e pesquisador da área de Transportes, acredita que no ‘lockdown’ parte da população também evitou viajar e se descolar, mas na medida que os protocolos foram flexibilizando, a população começa a se mobilizar, gerando um maior número de acidentes.
“Com a liberação de alguns setores, começa a fazer mais viagem e, naturalmente, a quantidade de acidente aumentou muito. Hoje, praticamente, o fluxo está normal”, ressalta.
Outro aspecto que aumento a quantidade de veículos nas ruas, acredita o pesquisador, é quantidade de pessoas que ainda evitam utilizar o transporte coletivo com medo de exposição de uma possível contaminação pelo coronavírus.Neste caso, preferem utilizar seu carro ou sua moto.
Ary acredita ainda que o retorno das aulas presenciais nas instituições de ensino aumentará o fluxo diário. “Por isso, é importante uma fiscalização maior”, reforça.
Unidades de saúde preocupam
As consequências deste aumento têm sido sentidas especialmente nas unidades de saúde referência em traumatologia. Na Santa Casa de Misericórdia de Sobral, que possui, ao todo, 355 leitos para todas as especialidades, já registrou, apenas em 2021, 1483 pacientes vítimas de acidentes de trânsito. Por problemas de filtragem de dados, que está em mudança de sistema, os números de 2020 e 2019 estão incompletos.
Mesmo assim, se somados apenas maio e junho deste ano, o número de vítimas de pacientes atendidos é 354 pessoas, duas a mais que a quantidade de 2020. O último mês foi o mais preocupante, somando 235, quase o dobro de maio, que aparece com 119 pacientes. O Hospital é referência para uma população de 1,8 milhão de habitantes na região Norte.
Já no Hospital Regional do Cariri, em Juazeiro do Norte, foram atendidas, no primeiro semestre, 757 vítimas de acidentes de trânsito, um leve aumento em relação ao mesmo período de 2020, quando a unidade recebeu 744 vítimas de acidentes. O número também é abaixo de 2019, ano anterior a pandemia, onde recebeu 870 pessoas acidentadas, quando a circulação de veículos era maior.
A situação voltou a preocupar o Hospital Santo Antônio, em Barbalha, que também é referência em traumatologia para a região do Cariri e Centro-Sul do Estado. De acordo com o neurologista da unidade, o médico João Ananias, antes da pandemia, cerca de 60% a 70% dos atendimentos neurológicos eram de vítimas de pacientes de trânsito, principalmente de moto.
Com a pandemia, caiu o número de pacientes, mas neste semestre voltou a subir e se aproximar deste cenário alarmante de 2019. “O politraumatismo por queda de motocicleta tem sido o mais comum. Tem havido traumas graves, envolvimento não só a cabeça como extremidades. Tem havido muitas amputações, traumas graves cranianos e até com óbitos”, descreve.
Impacto
O efeito disso para o sistema de saúde tem sido grave, na avaliação do neurologista. “Os acidentes passam a ocupar leitos, tanto de UTI como de enfermaria que poderia ser destinado para doenças não evitáveis, como um tumor cerebral. O trauma, na maioria das vezes é evitável. O sistema fica sobrecarregado e o custo direto é altíssimo. Tem uso do Samu, equipes de saúde, médico, leito”, reforça o médico.
Além disso, João Ananias reforça que, mesmo sobrevivendo, muitos pacientes acabam tendo sequelas graves. “Um braço ou pena amputados, quando não ficam incapacitados. Os que sofrem traumas cranianos podem ficar com alterações de comportamento e de memória, sofrer problemas na medula e não poder andar”, completa. Por isso, faz um apelo: “Usem o trânsito com responsabilidade, não pilotem sem capacete, respeitem as leis de trânsito e não dirigem sob efeitos de bebida alcoólica. Não pense só em si, mas no outro”, finaliza.
Cenário melhor no Sertão Central
Outra unidade que atende traumatologia no interior do Estado, o Hospital Regional do Sertão Central (HRSC), em Quixeramobim, tem registrado queda nos procedimentos cirúrgicos em decorrências de acidentes de trânsito.
Em 2019, foram 558 procedimentos, os quais 225 foram vítimas de acidentes de trânsito. Já em 2020, foram 433 procedimentos, sendo 195 pacientes vítimas de acidentes de trânsito. Por fim, neste ano, soma 410 procedimentos, sendo 165 em vítimas de acidentes de trânsito, uma diminuição de pouco mais de 15%.
Por Antonio Rodrigues
Fonte: Diário do Nordeste