O corte de bolsas para pós-graduação feito pelo governo Jair Bolsonaro em 2019 teve maior impacto no Nordeste. Os cursos mais atingidos são das áreas de engenharia, educação e medicina.
As bolsas são financiadas pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), órgão vinculado ao MEC (Ministério da Educação).
Comandada por Abraham Weintraub, a pasta passou por bloqueios de orçamento no ano passado. As medidas provocaram redução de investimentos.
Foram canceladas 7.590 bolsas para financiar pesquisas de pós-graduandos. No total, são 84,6 mil estudantes atendidos com financiamento.
A Folha obteve mapa detalhado da redução das bolsas em 2019 por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação).
Do total de benefícios, 7.114 são ligados aos chamados programas institucionais da Capes, em que a concessão do recurso ocorre entre o órgão e o programa de pós-graduação.
Outras 476 bolsas integram acordos e editais específicos, em geral por temas e abertos a várias instituições.
Para a análise dos dados obtidos pela LAI, a Folha levou em conta apenas os benefícios dos programas institucionais.
O número absoluto de bolsas canceladas foi maior no Sudeste. Porém, proporcionalmente, a região mais afetada foi o Nordeste.
No Sudeste, os cortes atingiram 2.882 bolsas —só a USP (Universidade de São Paulo) perdeu 420. Como a região concentra o maior número de programas e órgãos de pesquisa, os cancelamentos representaram 6% do total.
As instituições do Nordeste, por sua vez, perderam 2.063 bolsas, o equivalente a 12% das bolsas antes vigentes. Essa região do país tem um sistema menor e mais novo de pós-graduação e pesquisa.
Em todo o país, foram canceladas 8% das bolsas. Os critérios adotados para a redução do benefício foram, primeiramente, o de ociosidade (embora não houvesse bolsas ociosas —elas seriam atribuídas a novos pesquisadores) e depois o de qualidade, com base em avaliações realizadas pela Capes.
A régua da qualidade preservou programas com notas 6 e 7, as máximas do sistema. Nos cursos com nota 3, mínima para funcionamento, os cortes representaram 47% das bolsas canceladas, enquanto 44% são de programas com notas 4 e 5.
A Capes paga R$ 1.500 na bolsa de mestrado e R$ 2.200 no doutorado. A Capes afirmou à Folha que não usa o temo corte de bolsas porque a ação do governo não implica a interrupção de pagamentos de bolsistas e afeta apenas a entrada de novos bolsistas.
Não houve, porém, critérios para preservar regiões que mais precisam de pesquisa e desenvolvimento, como o Nordeste.
“Com cortes lineares, o impacto maior foi em regiões e programas menos consolidadas”, diz Márcio de Castro, que presidiu até o ano passado o Fórum Nacional de Pró-Reitores de Pesquisa e Pós-Graduação e é pró-reitor-adjunto de pós-graduação da USP.
Nem mesmo cursos bem avaliados no Nordeste foram poupados. Com nota 5, o mestrado e o doutorado em bioquímica da UFC (Universidade Federal do Ceará) perderam 17 bolsas. O corte representou o esvaziamento de um quarto dos benefícios antes vigentes.
O coordenador do programa, Cleverson de Freitas, afirma que a redução impacta também a oferta de vagas neste ano.
O programa é voltado para a bioquímica das plantas e, segundo ele, acumula patentes e parcerias com empresas, que ele vê ameaçadas.
“A bolsa é uma necessidade para os alunos, que precisam se dedicar integralmente à pesquisa e muitas vezes dormem ou passam o fim de semana no laboratório para acompanhar experimentos. Temos receio de que isso impacte na qualidade dos trabalhos e na formação dos alunos.”
Debora Cavalcante dos Santos, 24, foi aprovada no mestrado em bioquímica da UFC no meio do ano passado, ainda com a expectativa de conseguir financiamento. Não conseguiu o benefício, mas permaneceu no programa.
A pesquisa dela envolve a extração de polissacarídeos (carboidratos) de algas para estudos em fitoterapia.
“Tem sido bem complicado sem esse suporte, porque, na pesquisa, não tem muito como controlar o tempo de dedicação, é muito difícil conciliar com outro trabalho”, diz.
Formada em medicina veterinária, ela já recusou três propostas de emprego para se dedicar aos estudos.
A pesquisadora recebe a ajuda da família para se sustentar. A mãe é técnica de enfermagem e o pai, motorista de caminhão.
“Não é pela remuneração, estamos lá porque acreditamos na diferença que a nossa pesquisa pode fazer”, diz.
Além dos cortes por regiões, áreas consideradas prioritárias também não foram preservadas, ao contrário do discurso de Weintraub e de Bolsonaro.
Em abril de 2019, o presidente apontou engenharia e medicina como mais competitivas e que deveriam receber maior atenção no financiamento.
Mestrados e doutorados em engenharia, por exemplo, perderam 959 bolsas, o maior volume. Na sequência, aparecem educação, com 241 cortes, e medicina, cujos programas tiveram 232 bolsas cortadas.
O programa campeão de cortes, com 50 bolsas canceladas, foi o de engenharia química da UFCG (Universidade Federal de Campina Grande), na Paraíba, que tem nota 3.
Além desse, outros 21 programas da instituição perderam bolsas. O total de cortes chegou a 218 na instituição.
O pró-reitor de pós-graduação da UFCG, Benemar Alencar de Souza, diz que o contexto de cada universidade foi ignorado pelo governo. A UFCG foi criada em 2002 a partir do desmembramento da UFPB (Universidade Federal da Paraíba).
“Esse programa de engenharia química é antigo, mas foi a partir dele que surgiram outros dois programas de pós, em engenharia de processos e de materiais”, diz. “O programa não teve tempo de se reestruturar, e a Capes não levou isso em conta.”
Em maio de 2019, a Folha revelou que a Capes cancelou, sem aviso prévio, o acesso a bolsas de mestrado e doutorado. Eram benefícios que seriam repassados pelos programas de pós-graduação a novos pesquisadores.
Ao longo do ano, o governo anunciou novos cortes e voltou atrás em parte dos congelamentos, até que o saldo de cancelamentos ficou em 8% do total.
Os cortes ficaram em 686 cancelamentos (10%) no Centro-Oeste e 376 (9%), no Norte. Na região Sul, as 1.107 bolsas canceladas significaram 5% de perda.
No ano passado, Weintraub minimizou os bloqueios ao argumentar que o maior impacto estava em programas ruins e também em bolsas de livre escolha dos reitores.
Mas somente 3% das bolsas canceladas (241) tinham essa finalidade. Ligadas a pró-reitorias, e não a determinados programas, essas bolsas servem para auxiliar novos cursos, por exemplo. Outros 308 benefícios direcionados a pró-reitorias são destinados a instituições particulares.
Os efeitos seguirão neste ano. Segundo a Capes, não há planos para novos cortes. A verba para o órgão em 2020, no entanto, é menor do que a do ano anterior
Fonte: Folhapress