Uma versão digital do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), como a anunciada nesta quarta-feira (3) pelo governo federal, é vista por especialistas como um passo necessário para aprimorar a prova, mas que precisa levar em consideração aspectos como a desigualdade de acesso e a necessidade de nivelar a dificuldade dos dois formatos durante o período de transição.
De acordo com o modelo divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o piloto começará em 2020 com 50 mil estudantes, ou 1% do total previsto de candidatos, e será escalonado gradualmente até se tornar 100% digital em 2026.
Veja abaixo os principais pontos do projeto e as opiniões de dois pesquisadores especialistas na área de avaliações em larga escala:
– Em 2020, o Enem terá as duas aplicações anuais, além de uma aplicação em formato digital em dois dias de outubro;
– A aplicação em 2020 será em 15 capitais brasileiras (veja no mapa);
– A adesão dos candidatos será opcional no ato de inscrição, até um total de 50 mil participantes, o equivalente a 1% do total de participantes;
– O valor da inscrição será o mesmo para todos os participantes;
– Entre 2021 e 2025, o Inep ampliará o número de aplicações do Enem digital, ainda em formato piloto e participação opcional; em 2026, a prova será 100% digital;
– Tanto as provas objetivas quanto a prova de redação serão feitas em formato digital no piloto;
– O Enem para Pessoas Privadas de Liberdade (PPL) só passará ao formato digital a partir de 2026.
Para comentar as mudanças, o G1 ouviu o professor Ocimar Alavarse, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), e Tadeu da Ponte, professor e coordenador dos processos seletivos do Insper e fundador da empresa de avaliação Primeira Escolha.
O Enem digital é mais seguro?
Sim, mas ele não é imune a fraudes. Segundo Alavarse, é mais controlável a segurança por computador do que no papel, mesmo que não sejam eliminados todos os riscos.
Segundo ele, “existem questões de segurança que não dependem da mídia”, já que o Enem é um exame visado por quadrilhas que tentam fraudar vestibulares para carreiras disputadas. “Mas quando você faz no papel, você tem que distribuir a prova, expõe muito mais o processo a ataques”, completou ele.
No exame digital do Pisa, o ranking mundial de educação feito a cada três anos, o professor da USP explica que é comum que as máquinas usadas na aplicação passem por dois passos importantes: primeiro, apaga-se o HD dos computadores; depois, a internet é cortada.
“Você garante que não tem nenhuma cola instalada no computador e que ninguém de fora pode acessar a máquina. Isso diminui o risco, mas não elimina completamente, porque em algum momento essa prova foi elaborada, e alguém pode ter tido acesso a ela e repassado a alguém”, diz Ocimar Alavarse (USP).
Tadeu da Ponte explica que, em alguns lugares do mundo, os candidatos inclusive são monitorados por câmeras que também captam o áudio ambiente, “para ver se ele não faz nada anômalo”. Além disso, o especialista diz que já existem algoritmos de inteligência artificial capazes de fazer esse monitoramento, para evitar que alguém precise fazê-lo. “Porque daí seria a mesma coisa que aplicar no papel”, explicou ele sobre a necessidade de contratação de fiscais.
No entanto, os especialistas lembram que tentativas de fraude sempre vão ocorrer em exames que servem para disputas altamente concorridas, como vagas em vestibulares de prestígio.
O Enem digital tem metodologia melhor?
Em termos. A metodologia continua a mesma: a famosa Teoria de Resposta ao Item (TRI). Mas a prova no computador pode dar ao avaliador mais informações sobre os candidatos. “Se o aluno faz a prova de linguagens em muito tempo, e sobra pouco tempo pra ciências humanas, você não tem como controlar no papel, é impossível”, explica o especialista do Insper.
Na versão em tela, “você sabe qual foi o tempo que o aluno gastou para fazer cada uma das questões, é possível dar um tempo separado para cada área”, diz Tadeu da Ponte.
Além disso, Alavarse lembra que os enunciados podem ser feitos usando fotos coloridas — muito caras para um caderno de provas impresso — ou vídeos, áudios, imagens em movimento, entre outras ferramentas que não chegam até o papel.
O ministro da Educação, Abraham Weintraub, também ressaltou que a tela oferece novos formatos de questões que são impossíveis no papel, e disse que, depois que a transição estiver completa, “a imaginação é o limite”.
Segundo o ministro, se um dia o Inep tiver um “banco de itens infinitos”, com um volume muito grande de questões, é possível que ele se torne público e que uma prova do Enem seja elaborada em tempo real para um candidato.
Atualmente, o Inep, segundo fontes ouvidas pelo G1, dispõe de um número insuficiente de itens para realizar mais do que três edições por ano — a aplicação regular, a reaplicação e a prova “backup”.
TBC x TAI
Apesar de a metodologia ser a mesma, o Enem digital abre caminho para a aplicação de tecnologias de avaliação com o auxílio do computador que são impossíveis no formato impresso.
Segundo os especialistas, uma prova pode ser simplesmente uma versão em suporte digital do que antes era impresso (ou seja, um “teste baseado em computador”, ou TBC), mas também pode ser um “teste adaptativo informatizado” (TAI, também chamado de CAT, na sigla em inglês).
Nesse segundo caso, o computador vai adaptando o teste em tempo real e para cada participante, à medida que ele acerta ou erra as questões apresentadas. A grande vantagem disso é que, enquanto no Enem em papel todos os candidatos precisam responder a 45 questões de cada prova, para que o sistema consiga avaliar e colocar em uma escala a proficiência de cada um deles, no computador é possível chegar a essa mesma precisão com menos tempo.
Há alguns anos, a USP testou uma versão da hoje extinta Provinha Brasil na rede pública municipal em São Paulo. Na ocasião, foi adotado o método TAI. “As questões vão sendo apresentadas conforme o candidato vai respondendo. No TAI, em vez de o aluno fazer 90 questões, pode fazer de repente 30, ou 20, e você estima a proficiência muito melhor”, explicou Alavarse.
Mas o projeto-piloto do Inep, pelo menos até 2026, não vai adotar esse método. Alexandre Lopes, presidente da autarquia, explicou que, enquanto alguns candidatos estiverem fazendo a prova em papel e outros, a prova digital, não é possível garantir a isonomia para adotar o TAI.
O Enem digital vai aumentar a desigualdade?
Provavelmente é o que vai acontecer, principalmente no período de transição, diz Alavarse, da USP. Ele afirma que é inadequado que o Inep aplique um projeto-piloto que terá notas válidas para a concorrência com quem fez a edição em papel.
“Um dos principais problemas a serem enfrentados é: a dificuldade da prova em papel é a mesma da prova em computador? Vamos ter que pedir pro Inep estudos, pré-testes”, disse ele.
Procurado pelo G1 na tarde desta quarta-feira, o Inep informou que o piloto de outubro de 2020 será o primeiro teste do formato. A prova digital usará o mesmo banco de itens já existente.
O professor da USP afirmou que, na pesquisa da Provinha Brasil aplicada em alunos paulistanos, alguns dos itens da versão em tela apresentaram variação no nível de dificuldade em relação à edição em papel. Por isso, o ideal seria pré-testar e identificar quais questões poderiam ou não oferecer vantagens diferentes por causa do formato.
Rede pública x rede privada
Além disso, nos primeiros anos da prova digital, os candidatos de escolas particulares, que também são os de renda familiar mais alta, terão mais uma vantagem sobre os alunos de fora dos grandes centros e matriculados na rede pública.
“As escolas privadas, que têm mais recursos, certamente vão acelerar o processo [de adaptação a provas no computado], algumas já fazem no computador”, diz Alavarse. “Resta saber se as públicas terão capacidade de fazer o mesmo com seus alunos. Tudo indica que não.”
Embora não haja planos de que o Enem digital seja aplicado na casa de cada estudante, o acesso a computadores como meio de estudo e de adaptação para o novo formato deve favorecer os candidatos da rede privada.
Segundo a pesquisa TIC Educação, realizada anualmente pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), a maioria dos estudantes de escola particular têm computador de mesa, portátil ou tablet em casa. Já os de escola pública são minoria (veja gráfico abaixo).
Segundo Alavarse, o grande “desafio de fundo”, que já é verificado hoje, com o Enem em papel, mas que pode se aprofundar na versão digital, é “dar condições a todos para disputarem uma vaga que só dependesse das suas proficiências; hoje a gente sabe que outros fatores contam muito”.
Fonte: G1