Uma professora em Minas Gerais compra camundongos com o próprio dinheiro para não afetar sua pesquisa. O almoço no bandejão em Santa Catarina cortou o bife e o substituiu por picadinho de carne.
Estudantes da Bahia tiveram aulas canceladas em duas noites por falta de vigias. Em Mato Grosso, ficaram no escuro por um dia porque a energia foi cortada. Sob temperaturas de mais de 35°C, salas de Pernambuco e do sul baiano estão sem ar condicionado.
Os bloqueios de até 44% na verba de custeio das universidades federais pelo governo Jair Bolsonaro (PSL) neste ano já afetam a rotina de aulas e pesquisas.
Procurado, o Ministério da Educação disse ter liberado na última segunda-feira (2) R$ 614,4 milhões de limite de empenho e afirma que articula com o Ministério da Economia ampliar os repasses.
Em Florianópolis, mesmo que o preço da refeição tenha sido mantido em R$ 1,50, a crise aparece no prato do restaurante universitário da UFSC.
O estoque de alimentos diminuiu. O bife foi trocado por picadinho de carne; o frango, antes filé, agora vem desfiado. Ervilha e lentilha sumiram. Antes com frutas variadas, agora a sobremesa tem banana e laranja.
Desde agosto a crise afeta o cardápio do restaurante, aberto em 1965. Situação similar vivem os demais campi —Araranguá, Curitibanos, Joinville e Blumenau. Os espaços correm o risco de fechar até o final do ano, segundo a reitoria, em razão dos cortes no orçamento.
Os estudantes estão apreensivos. Alicia Lopes Prudencio, 21, aluna de artes cênicas, não paga pelas refeições, pois se enquadra no perfil socioeconômico que tem gratuidade.
“Sou uma dos muitos que sobrevivem com o que comem no restaurante universitário. Temos que dar conta das nossas vidas, estudos, pagar contas. Falar sobre isso me dá até um nó na garganta. Imagina os estudantes não terem o que comer?”
Segundo a Administração Central da UFSC, 80% da verba disponível já foi gasta, e o que sobrou pode não ser suficiente para pagar nem água, luz, segurança e limpeza.
Uma das saídas propostas foi vetar que 12 mil pessoas usem o espaço e deixar o restaurante só para os 3.000 alunos que comem gratuitamente — aqueles com renda bruta mensal de até 1,5 salário mínimo.
Após reação negativa, porém, a medida foi descartada nesta semana. “Vamos manter o RU [restaurante universitário] aberto até acabar o dinheiro. Acabando, o restaurante fecha, a universidade fecha”, afirmou o reitor Ubaldo Cesar Baltazar.
Também foi cancelado o maior evento de divulgação científica de Santa Catarina, a Sepex (Semana de Ensino Pesquisa e Extensão) — pela primeira vez desde que foi criado, em 2001.
Em Minas, a professora Angélica Thomaz Vieira, 37, decidiu comprar com os próprios recursos camundongos e insumos para não afetar o laboratório de Microbiota e Imunomodulação na UFMG.
Ela aplicou no local os R$ 50 mil que recebeu no prêmio Para Mulheres na Ciência, promovido por L’Oréal Brasil, Unesco e Academia Brasileira de Ciência.
“A gente está lutando contra a maré. Já tive três alunos que desistiram pela instabilidade, pela insegurança, pela falta de perspectiva”, conta.
Na UFMG, alunos e docentes contam que a limpeza se limita basicamente a retirar o lixo. Já a impressão de provas passou a ter cota. Uma das linhas de ônibus internas foi suspensa.
A pós-doutoranda Juliana Vago, 35, primeira colocada para uma bolsa Capes entre 18 candidatos, soube, poucos dias após receber a boa notícia, que teve a vaga cortada. Foi uma das 5.613 bolsas novas congeladas pelo governo no dia 2.
Seria uma alternativa para ela, já que o auxílio pelo CNPq, conquistado em abril, pode deixar de ser pago a partir do próximo mês. “Agora não sei como faço. Não tenho perspectiva de continuar o trabalho no Brasil.”
Há cerca de três anos, foi uma bolsa da Capes que permitiu ao nigeriano Seci Elijah Elasoru, 40, pesquisar problemas cardiovasculares.
Ele teme perder o auxílio em 2020 —parte dos R$ 2.200 que recebe como doutorando ele manda para a mulher e o filho de três anos que ficaram na África. “Estou mais que preocupado, sabe? É como se eu tivesse tudo a perder.”
Em Porto Alegre, o retrato da crise na UFRGS, a melhor federal do país pelo Índice Geral de Cursos (IGC) do MEC, pode ser resumido em um calendário. Dos doze meses, três meses e meio podem ser marcados em vermelho: são aqueles sem verba nenhuma.
Pior: o bloqueio atual vem em um orçamento já em ritmo de redução nos últimos anos, diz Hélio Henkin, pró-reitor de Planejamento e Administração da UFRGS. “Já cortamos as gorduras em 2017, a carne em 2018 e agora qualquer corte adicional é corte no osso. Essa é a nossa situação.”
Contas de luz estão atrasadas e cerca de 300 funcionários terceirizados de vigilância e limpeza já foram dispensados.
Se o ritmo se mantiver, serão afetadas as compras de software para computadores usados pelos alunos, materiais didáticos básicos e até reagentes para laboratórios.
No Rio, os efeitos na UFRJ nos estacionamentos e jardins passarão a ser visíveis a partir desta segunda (9). Os veículos oficiais vão ser racionados e o contrato de serviços de manutenção da área externa será suspenso, sem prazo para um novo.
Os ônibus internos passarão por nova licitação “para atender à nova conjuntura orçamentária”, mas a universidade promete que isso não vai prejudicar o transporte. Os funcionários em cargos de chefia terão que devolver celulares. As viagens internacionais para congressos, por exemplo, chegaram ao fim, e as nacionais foram limitadas.
O dinheiro disponível para bolsas de extensão só vai dar até dezembro e, no quadro de funcionários, haverá um corte na equipe de auxiliares de processamento de dados.
Na UFF, serviços como segurança e limpeza, que já vinham ruins, se agravaram: cerca de 400 terceirizados saíram até agosto, e mais 290 devem ser dispensados.
Na Bahia, a falta de repasses a serviços e fornecedores levou vigias da UFBA a fazer paralisação por dois dias, afetando aulas noturnas —eles voltaram após acordo.
“Ficamos numa situação vulnerável porque o campus fica muito deserto à noite. Não arriscaria vir sem os vigilantes”, diz Luine Santos, 22, aluna de biologia. A limpeza também foi reduzida.
Em nota, a universidade criticou os cortes e afirmou que eles afetam o exercício pleno das suas atividades e prejudicam os trabalhadores.
A federal do Sul da Bahia, com bloqueio de 36% de 14,6 milhões, desligou o ar condicionado e cortou viagens acadêmicas e a compra de materiais de laboratório.
Também estão sem ar condicionado salas de Recife, Vitória do Santo Antão e Caruaru, da UFPE. No mês passado, a federal recebeu R$ 8 milhões de R$ 14,3 milhões previstos.
Na UFMT, em 16 de julho, houve corte de energia em cinco campi —Cuiabá, Várzea Grande, Araguaia, Rondonópolis e Sinop– e na Base de Pesquisa do Pantanal. Após verba liberada pelo MEC, a energia foi retomada.
No Paraná, compra de itens de laboratório e atividades externas foram afetadas na UFPR —sem verbas, contratos de limpeza e vigilância, além de contas de água e luz, serão afetados já no próximo mês.
MEC diz tentar mais repasses com pasta da Economia
O Ministério da Educação afirma que fez repasses na última semana e que tenta, com a pasta da Economia, aumentar a liberação de verba para as universidades federais.
Em nota, o ministério diz que, para manter o funcionamento e autonomia das universidades federais, liberou na última segunda-feira (2) R$ 614,4 milhões de limite de empenho.
Os recursos serão destinados a 115 institutos e universidades federais de todo o país e serão aplicados na manutenção e custeio, com prioridade para despesas com água, energia elétrica, vigilância, limpeza, terceirizados em geral e aluguéis, bem como para assistência estudantil e funcionamento de restaurantes universitários.
A maior parte dos valores, R$ 376,7 milhões, segundo a nota, foi repassado às universidades federais. Já a rede federal de educação profissional, científica e tecnológica recebeu R$ 162 milhões.
“Na expectativa de uma evolução positiva nos indicadores fiscais do governo, o MEC vem articulando com o Ministério da Economia a possibilidade de ampliação dos limites de empenho e movimentação financeira a fim de cumprir todas as metas estabelecidas na legislação para a pasta”, diz a nota.
Ainda segundo o ministério, caso o cenário econômico apresente evolução positiva neste segundo semestre, “os valores bloqueados serão reavaliados”.
Fonte: Folha.com