“Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas.
Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha,
nem desconfia que se acha conosco desde o início
das eras. Pensa que está somente afogando problemas
dele, João Silva… Ele está é bebendo a milenar
inquietação do mundo!”
Mário Quintana
De onde brota o fascínio do bar? Por que o vinho, o whisky, a cerveja ganham sabores de um Grand Cru, quando degustados no balcão, na mesinha do botequim mais simples e mais empoeirado? Todo bom bebedor percebe, claramente, que os rituais ao deus Baco e Dionísio não obram milagres sem o clima e a necessária ritualística proporcionados pela sua catedral: o boteco de esquina. É que o barzinho faz-se uma espécie de oásis, o refúgio último da guerra cotidiana, das agruras do trabalho forçado e da busca de um shangri-lá ilusório que vai trocando, cotidianamente, num desigual escambo, pelos preciosos minutos e horas: aqueles tijolinhos de que se compõe a vida. Na taberna mais simples sentimo-nos todos como se a sineta do recreio tivesse soado e as pessoas ao nosso derredor se desarmassem, esquecessem o campo da batalha que ruge do outro lado da calçada e fosse, sim, possível a conversa solta, o desprendimento, o riso, a piada, a fofoca. E claro, como em toda liturgia, necessita-se do cauim do álcool para o transe. Afinal, como suportar o peso e a dor massacrantes do dia a dia, sem anestesia? Enebriados e ébrios, soltam-se as amarras impostas pela sociedade de consumo, as algemas dos códigos de postura e etiqueta colocadas em todos para o baile de máscaras da vida pública. No bar, o Rei está nu. O figurino do teatro das formalidades cai por terra. O paletó troca-se pela bermuda, a gravata joga-se no balde do lixo, a língua formal permuta-se pela vulgata, pela duplicidade de sentidos, pela gíria, pelo palavrão. Removidas as fantasias, diluídas as maquiagens, no botequim os homens se apresentam com suas qualidades , cicatrizes e imperfeições à mostra. In vino Veritas! Os armários se abrem, janelas do inconsciente se escancaram, leões, gazelas, macacos e porcos se misturam num interessante zoológico urbano.
Nestes dias, o Crato celebra os sessenta e cinco anos de uma das mais importantes basílicas da boemia caririense: o Bar e Restaurante Pau do Guarda. Instalado na então periferia da cidade, nos anos 50, ele acolheu muitas gerações de boêmios. Um dia, já nos anos 70, resolveu, literalmente descerrar suas portas vinte e quatro horas para o mundo e, simplesmente, as suprimiu. Qualquer templo que se preze deve estar pronto a acolher seus fiéis todas as horas do dia. O Pau do Guarda tornou-se, naturalmente, uma espécie de UPA da Boêmia cratense: aquela que mata a sede dos primeiros deodatos da manhã e mitiga a ressaca dos últimos paus d ´água da noite. Cicim & D. Raimunda , um dia, impelidos por um cliente contumaz, criaram um prato que terminou por se tornar um selo da cratensidade: o Pirão de Galinha. Aos poucos ele se imiscuiu na memória gustativa do cratense, assim como o Doce de Leite de Isabel Virgínia, a Tapioca com Fígado de Canena, o Filhós São José, o Baião de Dois com Pequi de Chico da Cascata, o Sanduba de Enoque. Eleito sentimentalmente pelo povo, o pirão tornou-se parte do patrimônio imaterial da cidade de Frei Carlos. Pelo destino noctívago do Pau do Guarda , ele sofreu perseguições por parte dos poderes constituídos, durante um certo período. Imputavam-no a responsabilidade de encontros escusos e secretos, nas madrugadas, como se o pecado do adultério fosse responsabilidade do divã e não dos amantes. Mas a tradição da casa venceu os seguidos obstáculos e, sessenta e cinco anos depois, Cicim & D. Raimundo ainda lépidos e fagueiros, continuam a demonstrar que as vilas não são edificadas de cimento, pedras e ferro. São sonhos, ambições, volúpias e desejos a verdadeira argamassa com que se erguem os alicerces de uma cidade.
Afinal, como tão bem definiu nosso Quintana, quando os boêmios do Pau do Guarda, nestas mais de seis décadas, entornavam seus copos, eles o faziam, inconscientemente, como elos de uma corrente que , em moto-contínuo, já varava os séculos. Eles bebiam e divertiam-se não só para soçobrar os seus anseios, frustrações e problemas; os boêmios sorvem, por todos nós, a milenar inquietação do mundo!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri