Era uma manhã fria para os padrões do Nordeste, caia uma leve chuva em peneira, as pessoas andavam encolhidas em seus agasalhos improvisados; apressadas que iam, os bons dias, saudações simpáticas em outras manhãs, soavam mecânicas, todos tinham resolvido ficar um pouco mais na cama.
Não digo que dormindo, posto que nosso relógio biológico é eficaz. Muitos, inclusive, acordaram bem antes que o de costuma, contudo, o barulho da chuva caindo soava como música após longo período de estiagem.
Numa casa, a mãe acordara às quatro, quando a chuva estava forte. Havia goteiras por todos os cômodos, especialmente no quarto das crianças e era preciso fazer algo; a mulher espalhara panelas e baldes nos pontos onde a água caía em biqueira, retirara os dois mais novos levando-os ao seu quarto; mudara o mais velho de lugar dentro do próprio quarto. Era preciso chamar alguém para consertar o telhado, mas como pagaria?
Em outra casa, ainda antes das cinco horas, uma polifonia de vozes debatia os impactos e consequências daquela chuva: iam todos atrasar, crianças na escola, adultos no trabalho; onde estavam os guarda-chuvas? Não havia guarda-chuvas na casa! Na última quadra chuvosa, eles mesmos foram esquecendo o importante objeto sazonal nos mais diversos lugares, um no ônibus, outro na antiga firma, um terceiro na rua, e um quarto guarda-chuva não se sabe onde. – Precisaremos de guarda-chuva! – Onde vende? Falou retoricamente o pai. Ao que alguém respondeu anacolutamente: – em todos os lugares, mas todos exigem dinheiro.
No pequeno edifício onde havia oito pequenos apartamentos, nos quais habitavam cinco famílias, e três trios de estudantes barulhentos, a briga era porque havia vazamentos em todas as paredes, os infiltramentos surgiam como hemorragia por todas as paredes. Rodos e baldes e panos de chão para secar o ambiente. Ninguém ajudava ninguém porque todos enfrentavam a mesma problemática. – Prédio malfeito! Praguejou o estudante de engenharia. Na certa se fosse ele o engenheiro, não estaria assim. Mas as coisas andavam cada dia pior na faculdade e havia o temor de que não pudesse concluí-la.
Embaixo da marquise do grande edifício onde funcionava várias lojas, moradores de rua ao relento, o espetáculo acústico-cromático dos trovões e relâmpagos foi o que houve de melhor. Exceto pelo vento que fazia com que a chuva quase horizontal entrasse marquise adentro e molhasse todos daquela família, o homem com ares de pai, uma mulher grávida, uma jovem metida à hippie, um adolescente que lia uma revista que encontrara no lixo, e duas crianças de cinco e quatro anos, respectivamente, esta chorava com medo dos trovões. O homem procurava os proteger com uma espécie de lona que amarrara na estrutura, mas pouco adiantava. – Muito pior era para os que ficaram na praça e dormiam pelos bancos!
Quase imperceptível, uma janela no grande casarão, a única que denunciava uma luz acesa onde alguém contemplava a chuva que caía lá fora. O barulho da água caindo em sincronia com os soluços, lágrimas do céu em enxurrada pelas ruas, lixeiras, garrafa pet, folhas secas, galhos, lixo; remorso, angústia, ansiedade, desespero, paixão, saudade.
Lá fora a chuva lavava as ruas, um mundo pequeno de realidades diversas. Lá dentro, lágrimas lavavam a alma de um mundo enorme que não cabia dentro de si.
Por Francinaldo Dias. Professor, cronista, contador de “causos” e poeta
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri