Quando Luiz Inácio Lula da Silva, o filho ilustre de Caetés, atual Garanhuns, chegou ao Planalto Central pela primeira vez, tio Antônio Dandim ainda gozava de uma lucidez invejável. Era um cabinha quase centenário que, nos momentos em que a família se reunia naquelas reuniões regadas a uma boa cerveja gelada e um churrasquinho na laje, contava as suas histórias da juventude. Verdadeira saga aventureira, cheia de humor e heroísmo, das quais as testemunhas já faziam parte da geologia dos campos santos.
Agricultor de profissão, sempre enfatizava as grandes extensões de terras que cultivava sozinho. No mínimo “Dez tarefas”, afirmava. E continuava “eu chegara na mata virgem, botava o jiquiri abaixo em poucos dias, depois encoivarava, acerava, e metia-lhe fogo! Em pouco mais de mês, tava lá, destocando e preparando a terra para plantar os legumes”. Se os netos ou sobrinhos perguntassem como um homem franzino tinha tanta força e coragem, ele respondia de pronto: “eu comia bem! Sempre comia um patarrão! Pergunte a Rosa!” Era Rosa a sua esposa, a famosa Rosa Dandim, que pra essas histórias, dava sua ratificação.
Além de agricultor, Antônio Dandim também fora caçador. Naqueles tempos antigos, caçar ainda era possível, a lei de crimes ambientais era inócua, e a consciência ambiental sucumbia à necessidade da mistura. Caçava-se para complemento de alimentação. Antônio, segundo ele mesmo, era o melhor caçador de região que ia da Macaúba ao Sertão do Santantôin na beira da Serra, descambando pros lados do Pernambuco. As suas narrativas tinham um quê das histórias de Alexandre, personagem de Graciliano Ramos. Ele contava sobre suas andanças com tanta riqueza de detalhes que era desnecessária a calção da expressão idiomática “perante Deus do céu” muito comum na região do Araripe, e eternizada pelo saudoso Pedro Rosinha, um compadre seu.
As boas aventuras de Antônio ocorreram até mais ou menos os anos 90, quando das suas últimas caçadas. Depois disso, teve que arribar definitivamente para as terras dos bandeirantes para viver ao lado dos filhos que desde os anos de chumbo, viviam por lá. Longe de seus hábitos sertanejos, restou-lhe contar histórias pros netos e sobrinhos. E paralelamente às contações de histórias, acompanhava a política. Foi nesse acompanhar da política que Antônio Dandim nutriu grande admiração pelo atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O presidente Lula tornou-se seu grande ídolo. Quando indagado sobre tanta paixão e admiração, Antônio dizia, “o homem olha pro povo do Sertão. O homem é lá de nós.” E lia tudo sobre Lula, e assistia tudo sobre Lula. O último quarto de sua vida foram dedicados a essa devoção pelo presidente Lula.
Mas o tempo é o dono de tudo, o que é novo fica um dia velho, e com a velhice vem as mazelas, e uma dessas mazelas é a demência, essa traz consigo a amnésia do que fomos. Com Antônio Dandim, esse esquecimento veio depois dos noventa anos. Por esse período, um de seus melhores ouvintes, Deca Dias, sobrinho que lhe dedicava tempo e escuta atentos às suas narrativas, fora transferido de São Paulo para o Recife, quando a empresa em que era empregado, abrira uma filial na Veneza brasileira. Quando da partida, Antônio ainda tinha flashes de memórias, e ainda reconhecia os familiares mais próximos e o sobrinho foi lá tomar-lhe a bênção e ouvir uma última história, talvez repetida.
Essa transferência durou dois anos, quando Deca Dias acabou por voltar a sua antiga unidade da empresa em São Paulo. De volta, fora visitar o querido tio, por quem sempre teve grande respeito e carinho. Antônio já havia mergulhado no lago do esquecimento, já não reconhecia a esposa, os filhos e filhas, e falava raramente, coisa com coisa. ao chegar à casa do tio, Deca Dias dirigiu-se à alcova onde aquela biblioteca viva, agora silenciosa, passava o ocaso da vida.
Ele entrou, pediu a bênção como de costume, e naturalmente não obteve resposta. Uma das filhas minutos antes já o avisara que o pai não mais reconhecia ninguém. Entretanto, Deca, numa última tentativa de comunicação, pergunta: “Tio, tudo bem? O senhor me conhece?” e o mestre Antônio Dandim, com voz já embargada pelo quase não uso, respondeu: “Conheço!”. A filha que estava ao lado, começa a chorar de emoção. Havia meses que ele não se comunicava e nem reconhecia ninguém. Então, para ter certeza de que tudo era real, perguntou ao pai: “Pai, e quem é ele?” ao que Antônio Vieira Dandim, respondeu-lhe numa última fala: “E né Lula?”.
Por Francinaldo Dias. Professor, cronista, flamenguista, contador de “causos” e poeta
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