Quando éramos cabinhas e jogávamos futebol de poeira no campo do Barreirão, o dono da bola era o Ronilson, um cabinha gente boa, ainda hoje é, mas que talvez por ser o filho caçula e muito mais novo que seu irmão e suas duas irmãs, fora muito mimado por sua família. Nos rachas dos cabinhas pequenos, ninguém podia triscar nele, porque sempre estávamos sob ameaça de que ele levasse a bola e acabasse o racha. Reclamar com ele? Nem pensar! E no time de fora ele já estava escalado mesmo estando jogando em um dos times da vez. Vai que perdesse, e não rara as vezes, perdia. A gente suportava aquilo porque não havia outra bola, era a dele e só. Como éramos tarados por futebol, aguentávamos aquela tirania sem resignação, pelo menos aparente,
Outro dia estive lendo “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector, pela enésima vez, e de novo senti asco de uma personagem, aquela menina “gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados” e tirana, muito tirana que torturava a narradora com a promessa de empréstimo do livro “Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato. Quando a gente gosta de uma coisa e quer aquela coisa, ou precisa daquela coisa, suporta-se indiferente certas atitudes tiranas.
Vi também no jornal que o presidente ianque Donald Trump está taxando outros países parceiros com taxas abusivas, dentre estes países está o Brasil. Trump é o dono da bola no racha da economia global, é a menina má do conto Felicidade Clandestina, no primeiro caso porque se apropria de uma condição específica e cômoda de que os outros precisam dele. No segundo caso porque ele é mau, é tirano e sente prazer em ver o outro sofrer com a sensação de não poder ter o que facilmente não lhe falta. Ele não entende que o jogo é coletivo, então, por capricho mínimo, alegou o trisco que nem machucou e leou a bola. Sabe-se lá das verdadeiras intenções daquele presidente. E o que preocupa é que ele não é mais criança, como o cabinha dono da bola nos rachas de nossa infância, como a menina má do conto, porque nesses casos houve esperança.
Por Francinaldo Dias. Professor, cronista, flamenguista, contador de “causos” e poeta
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