A insônia é um mal muito além do que narrou Garcia Marquez. Eu a tenho, e vez por outra sou acometido por crises que me fazem percorrer os séculos de minha não existência. Em meus transes de insônia percorro anti-horário a saga de meus destino do agora ao gênesis e os flashes do que fui me formando ao longo dos séculos só me levam a nada. Nada somos a não ser a caminhada. Lembranças apenas. Ameaçadas pelos brancos do Alzheimer e pela demência de ter muito sobrevivido.
Bem antes das casas que em sua maioria eram de taipa, feitas de varas e barro e cobertas com palhas, havia o nada, o sonho de se ter um chãozinho seu onde pudessem levantar as tais casinhas. Ainda não se tinha consciência dos direitos porque direitos não havia e ainda não havia as ruas. Mas veio a lei de terras, foi no segundo Reinado, os mandatários da época no país tomaram uma medida que seria determinante para a sua histórica concentração fundiária. Em 18 de setembro de 1850, o imperador dom Pedro II assinou a Lei de terras por meio da qual o país oficialmente optou por ter a zona rural dividida em latifúndios, e não em pequenas propriedades.
Foi assim que o avô do avô do avô do meu avô virou agregado de um coronel lá pras bandas do rio grande. Isso porque seus antepassados advindos de Angola tinham tido suas vidas tomadas no trabalho duro do campo, na construção de açudes, na abertura de estradas, na construção de pontes e no açoite do chicote dos herdeiros da terra da coroa. Sem terra para chamar de sua porque a lei era pros brancos, quem não morreu, tava “livre”, quem nasceu “livre”, tava cativo. A solução foi se apegar a fé, Yemanjá virou Nossa Senhora, Ogum virou São Jorge e Oxum a Imaculada Conceição, se não, ninguém teria chegado ao Kariri cearense anos depois da lei de ouro pra pedir capitão de feijão com farinha a meu padim padre Ciço.
Por aqui Cicero Dias conheceu Josefa Maria da Conceição, ele o avô que poderia ter sido e que não foi, ela, uma mistura da velha Totonha de Jose Lins do Rêgo, com o sorriso de papai, versão criada por mim não se sabe como nem porque a associação. No mais o que se sabe é que o forno dos engenhos do Caldas à Arajara eram sempre limpos e sua pele sapecada pelo calor residual das fornadas. Seus órgãos foram cozidos durante quase seus 40 anos, um tempo de eternidade para os padrões do sofrimento. Ela chegou a ver os netos, inclusive conviveu com alguns, até sucumbir vítima da mazela que progressivamente consumiu todos os seus filhos e filhas. Deixando somente a a história perdida nos papiros da lembrança de quem ainda ousa inventar.
A árvore cresceu, até porque o galho matriarcal possuía o privilégio da sorte da pele clara, e procriou, e se misturou com o paturi, e escureceu, mas ai já não importava que o orgulho já se tinha da luta do outro galho. A progressão geométrica de vó com nome de princesa, Doroteia, e vô com nome de crítico literário Antonio Cândido, gaiato, paturi. Ruim dos pulmão, foi cedo na velhice e deixou-nos herdeiro da alegria. Assim estamos cá. Certos de que Dias melhores sempre virão!
Por Francinaldo Dias. Professor, cronista, contador de “causos” e poeta
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri