“A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te ouço a passada
Existir como eu existo.”
Fernando Pessoa
Difícil conviver com a inexorabilidade da impermanência. Imaginar que construímos, a duras penas, nossa pequena cabana de palha e que, mais dia menos dia, será levada pela primeira lufada de vento. Este, certamente, é o maior drama da existência humana, aquele que alimentou todas as correntes filosóficas, a construção dos mitos, o soerguimento das religiões. Impossível se conformar com o percurso fatal do pó ao pó, sem ao menos algumas estações intermediárias. Por paradoxal que possa parecer, neste ponto, Ciência e Religião (tão antagônicas sempre) se tocam. As religiões dão-nos o bálsamo da reunião física quando do Juízo Final, ou da possibilidade de Reencarnação, quando nosso espírito apenas trocaria de roupa e retornaria para o festim terrestre. A Ciência nos conforta com a certeza de que somos apenas um amálgama de massa e energia, perfeitamente intercambiável. Com a morte, trocaríamos apenas a roupagem, nossos átomos passariam a compor árvores, fluxo de rios, penas de pássaros, a luz dos vagalumes, o calor do solo, a luz da manhã. No fundo, comporíamos a grande colcha de retalhos energética do universo, restando-nos a alegria e certeza da permanência eterna mesmo dentro da aparente impermanência.
Claro que todas essas mutações de energia, seja do ponto de vista espiritual ou física, nos legam um consolo dúbio e pouco tranquilizador. A matéria é bem mais vistosa e palpável, os fluxos espirituais ou energéticos são abstrações. Os inúmeros e pequenos fragmentos do cristal estilhaçado, por mais que imaginemos que é apenas a mesma taça em pedacinhos, não nos conforta quanto à perda.
Nestes dias, bateu-nos, novamente, esta trágica realidade quando nos deixou, subitamente, o querido Flávio Queiroz. Mestre de Literatura, amante da poesia de Fernando Pessoa, ele foi um grande formador de professores de Língua Portuguesa no Cariri. Ensinou, ainda, os mistérios do escrever, em aulas de Redação. Flávio sabia que na escrita existe toda uma parte técnica e mecânica que pode ser perfeitamente desenvolvida e aprendida. Claro que seu intuito não era criar novos Machados ou Patativas, como um professor de música não pode ter a pretensão de criar novos Mozarts ou Bethovens. Há os gênios que aparecem meteoricamente na história do mundo. Queria formar alunos que escrevam com correção a língua pátria e que redijam com coesão e coerência, que sejam tocados pelos caminhos enviesados da poesia e que entendam a importância da leitura no desenvolvimento do escrever; essa foi a missão de vida de Flávio Queiroz.
Não bastasse essas qualidades intelectuais e didáticas, Flávio foi uma grande figura humana. Difícil vê-lo sem um sorriso armado, pronto para o bote. Educado, de trato fácil, ensinava não apenas pela linguagem que tão bem conhecia. Acompanhava-o, em todos momentos, uma delicada linguagem corporal. Devo a ele a apresentação do meu livro “A Delicada Trama do Labirinto” e o acompanhamento na edição de “O Mistério das 13 Portas”, inclusive dedicado, entre tantas outras crianças, ao seu filho Ulisses.
Nos últimos anos, Flávio tornara-se bem mais envolvido nos mistérios da Religião. Sua partida comoveu toda a esfera educacional e acadêmica do Cariri. Como se a Língua mãe, de repente, estivesse impossibilitada de articular palavras. Nestas horas nem a Ciência, nem a Religião parecem trazer conforto àqueles que ficaram. Bate-nos a calamidade da perda física, parece reles o consolo da permanência energética ou espiritual. Depois da última curva da estrada, a presença de Flávio, no entanto, é viva e perceptível em todos aqueles que formou e mostrou caminhos, nos filhos de sangue e intelectuais que continuarão semeando os frutos benfazejos e, principalmente, na certeza de que com ações simples e delicadas é possível formar cidadãos, moldar países e entregar aos pósteros um mundo melhor do que aquele que, um dia, nos foi legado. Flávio vive.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri