“Uma obra de arte deve levar um homem a reagir, sentir sua força,
começar a criar também, mesmo que só na imaginação.
Ele tem de ser agarrado pelo pescoço e sacudido;
é preciso torná-lo consciente do mundo em que vive,
e, para isso, primeiro ele precisa ser arrancado deste mundo.”
Pablo Picasso
Lembra aquele garoto que colocava o pássaro ferido debaixo de uma cumbuca e batia, ritmicamente, na intenção de reanimá-lo, de trazê-lo de volta à vida? Pois a Arte tem justamente a mesma pretensão daquele guri. Crescidos, jogados no ruge-ruge da vida, vamos embotando a nossa vista para a diversidade incontável do mundo e começamos a enxergá-lo apenas numa única direção. Perdemos aquela certeza infantil de que a realidade é um caleidoscópio que muda a cada fração de tempo. Passamos a compreender o planeta como estático, paralisado. O artista guardou consigo os olhos da infância e tem uma visão em trezentos e sessenta graus, consegue entrever a realidade por ângulos diversos e inusitados. Ele nos coloca debaixo da sua cumbuca e, em toques rítmicos, busca nos despertar da nossa letargia, da ação do curare cotidiano. A Arte é essa ducha fria e reanimadora contra a aparente normalidade/imutabilidade da vida.
O Centro Cultural do Cariri Sérvulo Esmeraldo, neste último 24 de agosto, inaugurou a mais bonita e completa Exposição que já desembarcou no Cariri: “Esse é Sérvulo Esmeraldo”. Ela comemora os 95 anos de um dos mais importantes artistas plásticos brasileiros, do Século XX, cratense da gema, criado no sopé da nossa Chapada do Araripe, cujos relevo, verdor e fontes se fizeram a seiva que alimentou sua Arte durante toda existência. A Exposição, que permanecerá aberta ao público até abril do próximo ano, é a mais completa que já se fez do artista e tem a curadoria de Dodora Guimarães, incansável batalhadora pela memória de Sérvulo.
A visita é obrigatória a todos aqueles que desejarem conhecer os outros ângulos possíveis da vida que freme ao nosso redor. Será possível acompanhar Sérvulo em todas suas fases, uma obra gigantesca que passou do figurativismo, à Cinética, ao geométrico-construtivismo, aos excitáveis; ciclando da pintura, à xilogravura e à escultura (essa, talvez, a sua linguagem de maior impacto e maior contributo para a Arte mundial).
O comum dos viventes se surpreenderá com o vanguardismo das obras que lhe tocarão os olhos. Acostumados todos com o figurativo, com a paisagem, com a reconstituição fotográfica da natureza, no primeiro momento, poderá nos bater aquela sensação do boi olhando para lua. É que Sérvulo nos leva a perceber a realidade em ângulos novos. A todo instante, vai rodando o caleidoscópio. Ele ensina que é preciso reeducar nossos sentidos para as novas perspectivas que se abrem, pois a Arte não é para ser compreendida, mas sentida. Na Arte, como na vida, a principal lição que brota das suas obras é que tudo, em verdade, são nuances de Sombra e de Luz.
Dos artistas brasileiros, Sérvulo foi, certamente, um dos que mais entenderam que a Arte deve fazer parte da vida comum e do cotidiano das pessoas. Espalhou esculturas gigantescas pelas cidades, principalmente em Fortaleza e aqui no Crato, como intervenção na paisagem natural, criando verdadeiros museus públicos urbanos, espelhando outras visões e dimensões possíveis de serem vistas e apreciadas.
Sérvulo deixou o Crato, fisicamente, aos vinte e cinco anos, morou em São Paulo, em Paris mais de duas décadas e, na maturidade, fixou-se em Fortaleza. Sua alma, no entanto, nunca se afastou, um milímetro que fosse, da Bebida Nova. Para ser universal, ele sabia, é imprescindível olhar o mundo com o filtro regional.
Todos são convidados a visitar a Exposição estupenda de Sérvulo no Centro Cultural, em Crato. Alguns sairão encantados, outros, simplesmente, não apreciarão, mas, o mais importante: ninguém sairá dali com os mesmos olhos embaçados, depois de receber o colírio artístico contra a servidão (Viva Sérvulo!), a paralisia, o empalhamento, a apatia, o curare entorpecedor da aparente normalidade. Vamos con(ferir)?
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri