Causou espanto, em Matozinho, a inusitada novidade de que Astrogildo Franciné, conhecido por todos como Cigabelha, tinha conseguido emprego no Armarinho de Juca de Totonho. Quem lá diabos podia acreditar numa numa notícia tão troncha? Cigabelha sempre fora daqueles com alergia laborativa, a quem qualquer menção a trabalho causava de imediato coceira pelo corpo, suadeira e sensação de desmaio. Suor dele, comentava-se, curava qualquer doença terminal, um pingo que fosse! O homem, como os lobisomens e os morcegos, tinha hábito noturno. O próprio apelido dizia tudo: Cigabelha, uma mistura híbrida de cigarra com abelha: quando não estava cantando nos bares, estava atolado no mel. Sinal dos tempos! Antes tarde do que nunca! Cigabelha, por fim, acordara para o mundo real, o lobisomem resolvera enfrentar a luz do sol.
A partir daquele dia, Astrogildo começou a ser visto por trás do balcão de Totonho, em meio à diversidade de itens à venda: chapéus, rendas, aviamentos, linhas, tesouras, panelas, guarda-sóis, pinicos, botões, miçangas… Sem nenhuma experiência em qualquer ramo que demandasse paciência e negociação, já cinquentão, Cigabelha não era nenhuma Nossa Senhora mas era cheio de gracinhas e achava-se capaz de obrar milagres. Foi orientado por Totonho nas artes de vendedor que muito tem a ver com as de sedução. Se alguém pedisse algum item que não tivesse na casa, jamais respondesse: não temos! Fizesse o desdobro, o cerca-lourenço: no momento, pela grande procura, está em falta, mas já providenciamos o reabastecimento! E sempre indicasse um outro produto a substituir: linha branca número 40, não temos hoje, mas a senhora pode levar creme número 100, é inclusive mais grossa e forte!
A primeira potoca envolvendo o novo funcionário correu, em Matozinho, já na primeira semana de trabalho do novo balconista. Segundo consta, uma grã-fina da cidade procurou, no Armazém, por papel higiênico. Cigabelha, já treinado, informou que, infelizmente o item estava em falta. E foi convincente: D. Cirene, parece que as vacas dessa cidade não estão fabricando mais leite e sim oléo de rícino! Uma caganeira que nunca se viu! Nem no tempo da cólera! Papel higiênico não tem, a senhora pode levar lixa número zero!
De outra feita, uma madame procurou um botão pequeno para colocar na camisa do marido. Cigabelha só encontrou um bem grande e orientou: a senhora pode levar esse que faz o mesmo efeito, é só aumentar a casa. E mostrando o botãozão de paletó:
— Esse aqui, D. Generina, é do tamanho dos botões de hemorróida de Padre Arcelino! O fiofó do vigário tá em pandareco: não vale mais dois tõins. Ele quis trocar pelo de Chico Muié, e Chico pediu duzentos mil réis de vorta!
Semana passada rolou a notícia mais que esperada: Cigabelha foi dispensado. Pôde por fim retornar à noite, seu habitat natural. Entre o canto e o mel. O motivo teria sido uma das muitas mungangas do nosso Cigabelha. Uma senhora o procurou, no Armarinho, em busca de um saquinho de meio quilo de Naftalina. O balconista achou a quantidade grande e, verificando, viu que não tinha o suficiente. Perguntou-lhe, então, para que era aquele monte de bolinhas que nem cabiam no guarda roupas e podiam intinguizar as roupas com o cheiro forte. D. Agnalda respondeu que era para jogar por cima do forro da casa que estava empestado de morcego e soube que o odor da naftalina espantava os bichos. Cigabelha tirou-lhe esta esperança.
— Naftalina, D. Agnalda, não espanta morgego, não! Tiro por mim. Tive esse problema lá em casa. E de morcego eu entendo! Botei um quilo no forro lá de casa e, de noite, não consegui dormir com a zoadeira da morcegada agitada. Pensei que era eles doidos com o cheiro forte e fazendo bunda de ema. Quando amanheceu, como o zum-zum-zum continuasse, peguei a escada, destelhei parte do forro e a zoadeira, sabe o que era? Eles, na maior alegria, jogando futebol com as bolinhas de naftalina e a torcida gritando:
— Gooooooooooollll! Gooooooooooollll! Serve lá nada!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri