“O tempo
entre o sopro
e o apagar da vela.”
Paulo Leminski
Talvez a vida se resuma exatamente a isso: o breve espaço que separa o sopro do apagar da vela. O tempo, no dizer de Quintana, é o mais voraz dos animais domésticos. E, pobres humanos, convivemos com a inexorabilidade do seu passar. Como se o tic-tac dos ponteiros fosse devorando fragmentos de instantes, momentos, vivências. A água que escorre por sob a ponte flui para a foz, nunca mais retorna à nascente. O Eclesiastes vaticina que há tempo para todo o propósito debaixo do céu, mas o moto-contínuo da areia fluindo pela ampulheta nos deixa cépticos sobre a esperança da colheita futura ainda em tempos de semeadura. Nunca sabemos o que nos espera na próxima curva da estrada: o abismo ou o arco-íris? A grande questão da existência talvez esteja escondida na mensuração do tempo com a bitola do tic-tac do relógio: os segundos, minutos e horas. Neste sistema métrico, a vida se estende por alguns anos prováveis, calculados em tabelas estatísticas, salvo, claro, os acidentes de percurso, os desvios padrão.
Rubem Alves, por outro lado, falava com propriedade que a vida se mede não só pelas batidas do relógio, mas também pelas do coração. Precisaria ser aferida em quantidade mas também em intensidade. Há instantes únicos, efêmeros, voláteis que significam toda uma passagem terrestre: o sorriso do filho, o beijo de uma namorada, uma imersão espiritual, o amanhecer a beira mar. Impossível avaliá-los pela simples trena cronológica. Vidas como a de Rimbaud que partiu aos 37 anos; Castro Alves, aos 24 e Francisco de Assis aos 44 demonstram que a longevidade não pode ser calculada apenas pelas folhinhas do calendário. Estão eles perfeitamente vivos, ativos e perenes nos dias de hoje. Impulsionados que foram pela poesia e pela fé que é uma forma mimética de poesia.
A verdadeira dimensão de uma existência não se computa pelos anos vividos mas pela intensidade que se conseguiu impelir em cada um dos instantes que se desfrutou.
Celebramos neste sábado (3), o centenário da minha tia e madrinha Almina Alencar Arraes Pinheiro. A tia conseguiu um feito quase único, associou uma longevidade cronológica mas também sentimental à sua vida. Como professora teve nas mãos a possibilidade de mudar rumos e destinos; como mãe semeou pelo mundo frutos benfazejos e opimos, e brindou-nos, no outono da sua trajetória luminosa, com a lição de que, mesmo com o irremissível desfolhar da árvore da existência, pelo sopro do tempo, é possível parar sempre no ‘bem-me-quer’.
Encontra-se lúcida e ativa. Desde os 80 anos navega pelos mares da internet como uma capitã de longo curso. Escreveu, inclusive, uma cartilha para pessoas da terceira idade terem acesso mais fácil ao mundo digital. Ela legou á posteridade a sua duradoura aula de mestre de que é preciso beber a existência em todas suas estações. Banhar-se na exuberância multicolorida da Primavera; resplandecer com os raios incandescentes do sol, no Verão; travestir-se de novas roupas e adereços como as árvores o fazem no Outono e encantar-se com o curto-circuito dos relâmpagos e a chuva que cai no telhado nos rigores do Inverno. Que percurso vital acolhedor e pleno! Como a vida pode ser longa e próspera entre o sopro e o apagar da vela!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri