Júlio partiu na terça-feira (4), tão silentemente como viveu. Sempre morou no Sítio São Vicente, nas proximidades do Coqueiro, aqui no Crato. Lá, como um João de Barro, fez sua casinha, criou os filhos e acompanhou a chegada dos netos. Trabalhador de eito, envolvia-se com o engenho de cana do meu avô em tempos de moagem. No resto do ano, cuidava da pecuária e era o pombo-correio do velho Antonio Pinheiro Gonçalves. Fazia frequentemente o percurso até à cidade, levando alfenins, aguardente, rapadura e batidas para venda ou para regalos de familiares. Trazia, de volta, víveres comprados na feira livre. Calmo, tranquilo, compenetrado fazia-se o tipo do funcionário dos sonhos de qualquer fazendeiro. Acredito que meu avô era padrinho de um dos seus filhos, tanto que me dei por gente chamando-o de Compadre Júlio. Após o desaparecimento do meu avô, na partilha dos bens, foi consenso dos herdeiros deixarem para ele, uma tarefa da terra. Ali continuou, depois da aposentadoria, morando no Tabuleiro, na hoje comunidade do “Vale do Amanhecer”. Ontem partiu para outros amanheceres e despertares, lúcido ainda aos 99 anos.
Pus-me aqui, com meus botões, que já escapolem das casas puídas, a pensar nas reentrâncias das veredas da vida. Compadre Júlio, mesmo imerso num cotidiano de muito trabalho e parcos recursos, sempre me pareceu feliz e realizado. Nunca o vi reclamar das condições em que se via imerso. Não esbravejou contra políticos, patrões, nem contra a inoperância dos deuses e santos que tinham, aparentemente, a capacidade de mudar aquele estado de coisas. No meio do furacão não se pôs contra a fúria dos ventos, deixou-se levar no torvelinho e curtiu o corrupio em vendaval que lhe foi oferecido. Surfou no maremoto e cuidou para não fazer marola aos que nadavam ao seu lado. Para Júlio, as preocupações básicas do dia a dia lhe bastavam. Cuidou para não inflar os problemas e torná-los grávidos e férteis. De pouco estudo, trazia, no entanto, consigo, a sabedoria intuitiva dos Cínicos. Sempre lutou para colocar seus sonhos ao alcance das mãos. O fruto mais saboroso para ele fez-se sempre aquele que pudesse colher, de preferência, nos galhos mais baixos da árvore. Legou a angústia e a ansiedade dos que miram os píncaros, para os ambiciosos e egoístas de plantão. Júlio construiu das flores do campo, dos despertares e amanheceres, do canto do sabiá, das guloseimas do engenho a sua Disneylândia. Incapaz de vencer a fome voraz do tempo, fez-se dele cúmplice e, com técnicas de relojoeiro, foi debulhando o rosário infinito das horas. Ontem os ponteiros emperraram, mas Júlio nunca os imaginou como integrantes de um moto-contínuo.
Lembrei uma história de um personagem do folclore turco, Nasrudin, que se acredita ter vivido no Século XIII. Contam que ele estava ajoelhado, à noite, junto de um capinzal, próximo a um poste de iluminação a óleo. Um amigo vi-o naquela situação e buscou ajudá-lo. Que diabos estava fazendo ali? – perguntou. Nasrudin disse que havia perdido a chave de sua casa e estava procurando. O amigo então ajoelhou-se com ele e passou a palmilhar, o capinzal, em busca da tal chave perdida. Horas depois, sem nenhum êxito, o rapaz lhe interrogou se ele tinha certeza haver perdido a chave exatamente naquele lugar. Nasrudin respondeu, então:
– Não, não foi aqui! Foi no meio do mato!
O amigo, então, estranhou:
– E por que a gente está procurando é aqui, Nasrudin? E ele respondeu: Ora! Porque aqui está mais iluminado!
Nestes tempos em que a capacidade de consumir passou a ser a balança da felicidade, onde ser feliz se mede pelo que se ostenta na rede social, Compadre Júlio nos deixa uma lição. Realizado ou depressivo, alegre ou triste, ansioso ou tranquilo tudo depende da forma como encaramos a vida. Você é quem decide quanto de felicidade tem que colocar na cuia para que você se sentir pleno e realizado. O cheio sempre leva ao risco de transbordamento. Compadre Júlio percebia tudo isso: a felicidade talvez não se encontrasse naquelas pequenas coisinhas obscuras e simples que aprendeu a amar e valorizar. Buscou lá, como Nasrudin, talvez naquele lugar não encontrasse, mas ali estava mais claro.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
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