Nestes dias, em São Paulo, um adolescente de dezesseis anos, sorrateiramente, pegou o revólver do pai, que era guarda municipal, e o executou, na cozinha, atingindo-o na nuca. Após o disparo, ouviu o grito da irmã assustada e a assassinou no quarto, com um tiro no rosto. Calmamente, aguardou a chegada da mãe que vinha do trabalho e, também a executou sem nenhum constrangimento. No dia seguinte ainda esfaqueou-a, já morta, porque ainda sentia raiva. Passou as próximas setenta de duas horas em casa, convivendo com os corpos, até avisar à polícia do ocorrido. Surpreendeu-se ao ser detido e recolhido a uma Casa de Menores Infratores, mas, em nenhum momento, esboçou qualquer sinal de arrependimento. Disse que gostava da irmã mas precisou matá-la porque ela tentaria impedir, com certeza, o assassinato da genitora. Se a frieza do ato já mexe com todos os sentimentos de humanidade, a causa da raiva e do ato tresloucado, então deixou a todos boquiabertos. O menino resolvera chacinar a família revoltado contra um castigo que lhe foi imposto pelos pais: eles o impediam de usar, temporariamente, o computador e o celular.
Sombrios tempos estes porque passamos. O menor deverá ser avaliado psiquiatricamente, mas paira, em todos nós, os sintomas de um período distópico porque passa o mundo, cada dia mais Orwelliano. Essa nova geração tem a tela do celular como um portal para um outro universo. Ali monta sua morada, faz seus amigos, constrói sua própria constituição. Enquanto os pais estão assoberbados de tarefas, conseguindo a duras penas raízes de sobrevivência, os filhos estão enfeitiçados pela tela brilante dos smartphones, lançados nas redes sociais, num planeta de aparências, onde a vida ou a morte dependem apenas de “likes”. Ali não há o toque, o olho no olho, o calor humano. Como num videogame, qualquer desavença pode ser resolvida, rapidamente, pelo “bloqueio”, pela “exclusão”. Os inimigos que por ventura apareçam podem ser eliminados, facilmente, como num game, por armas variadas, sem nenhum sinal de arrependimento. Para todos efeitos, os inimigos, sob qualquer pretexto, devem ser aniquilados e os jogadores têm, sempre, muitas vidas a sua disposição.
Ao cortar o acesso do filho a este mundo fantasioso, os pais, simplesmente, tiraram-lhe a possibilidade de sobreviver no único universo em que tem livre trânsito e, aí, rapidamente, se tornaram um alvo a ser eliminado. A frialdade com que agiu diante da família chacinada dá uma clara ideia da Atimia que é o sentimento básico a preencher o mundo virtual. Na cabeça do adolescente, ele apenas eliminou um obstáculo de uma fase do seu game. Seu total estranhamento com a prisão que se seguiu dá uma clara ideia de que apenas tinha conseguido avançar para uma nova etapa da partida do “Star Wars”. No mundo virtual em que a nova geração reside, excluir, bloquear, eliminar são atos simples, cabíveis e justificáveis e tudo isso pode ser feito à distância, sem sujar as mãos, com sensação de anonimato, com um mero toque no controle ou no console.
A tecnologia traz no anverso da moeda as possibilidades incontáveis e maravilhosas da evolução e modernidade, mas o reverso carrega consigo um botão de autoextermínio. A chacina de São Paulo é um sinal paradigmático desse tempo. O grande problema é que a virtualidade é só uma mera abstração da vida real. Apenas uma sombra e quando não mais houver o objeto a ser refletido, ela também não mais existirá.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri