Tia Lúcia, irmã de minha mãe, partiu quinta-feira. Restam apenas agora dois bruguelos da ninhada de dezenove filhos do meu avô materno Antônio Pinheiro Gonçalves. Minhas tias Conceição, Luzanira, Lúcia e minha avó Sinhá, conviveram comigo durante toda a infância e adolescência, morávamos em casas contíguas. Luzanira e Conceição eram doces e afáveis. Sinhá e Lúcia mais reservadas e casca grossa, mas, no fundo, eram uma trufa: duras na superfície mas moles no interior. Aliás uma característica de boa parte dos Pinheiro, temperamento de faixada irascível, mas quebradas as primeiras camadas, são adocicados e palatáveis. Acho que puxei um pouco a elas neste ponto, alguns me acham antipático e de poucas palavras. Mas, do outro lado, herdei a irreverência e o humor varzealegrense de meu pai, tios e avô paterno. Colocados as duas extremidades na balança, acho que os pratos ficam no meio e, na maior parte das vezes, é possível me suportar.
Sexta-feira, na angústia do velório, sempre opressivo mesmo com a certeza de que a tia vivera nove décadas, pus-me a pensar. Pareceu-me feliz. Solteira, sem filhos, lembrei que ela aprendeu a conviver com seus próprios conflitos. Só os últimos meses lhe pesaram, uma dolorosa via crucis até a despedida. Percebo, sempre, como a morte e seu séquito me atormentam. Acredito que uma parte dessa convivência conflituosa com a “velha da foiçona”, vem desde a minha infância. Morava a pouco metros do cemitério e convivi desde pequenino com os enterros, as velas, as coroas, os choros e os velórios. Depois, formei-me em Medicina e minha função, desde o princípio, era lutar contra a Caetana. Sempre que perdia a batalha, caía sobre mim toda a certeza avassaladora da impotência. Ainda estudante, dava plantão em Recife num hospital psiquiátrico. Um colega, com formação psicanalítica, um dia me confessou que eu, um agnóstico, desses que não acreditam em céu e inferno, em reencarnação, devia ter uma convivência muito difícil com a ideia de Morte. E ele tinha lá suas razões.
Diante da partida de familiares e amigos bate-me sempre a iniquidade da existência. Uma viagem curta, com muitos acidentes e catabis, tão veloz que sequer temos tempo de curtir a paisagem e, de repente… o abismo! E aí, como Vinícius, vem sempre aquela inevitável pergunta ao Criador:
— Se foi pra desfazer, meu Chapa, por que é que fez?
De qualquer maneira vale o escrito na lousa, mesmo que o giz já tenha vindo junto com o apagador. Escrevemos nossa trajetória na superfície das águas. Existimos apenas para aqueles que naquele breve espaço de tempo, entre o abrir e fechar irremediável das águas, conseguiram ler nossa mensagem. Somos apenas libélulas tocando a lâmina líquida dos rios: não esculpimos sua face, não chegamos às profundezas, não mudamos o seu curso. Só libélulas. Valeu pelo voo rasante!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri