Nos últimos tempos, os direitos trabalhistas, conquistados a duras penas por gerações de trabalhadores, foram sendo , pouco a pouco, esfacelados pelo senhor do momento o tal de “Mercado”. E pense num bicho mufino e cheio de xilique este grande guru que, de maneira secreta, escondido no meio das sombras como se brincando de esconde-esconde, vai mexendo suas marionetes e movimentando as peças do mundo! Nenhuma decisão política pode ser tomada sem que se ouça suas pitonisas. Para alcançar seu intento, nesse jogo sujo, enquanto arrancava as raízes mínimas da segurança trabalhista, ele foi hipnotizando os peões no tabuleiro, dando-lhes aura de Reis e Rainhas (sem mandatos e sem cetros). Criou-se, rapidamente, um nome pomposo para aqueles que agora foram jogados nos covis dos leões: “Empreendedor”! Nome cabalístico que até rima com Imperador. Sob a aura de que você é dono da sua própria vida, não precisa receber ordem de ninguém, tem a liberdade de trabalhar quando e onde quiser e de que é o patrão de você mesmo, eis aí o “Empreendedor”, o grande mito dos tempos atuais! Lançado na selva mercadológica, sem bodoque e sem pedra, as formigas sonham que é possível subverter a cadeia alimentar e engolir o urso e elefante. Vendedor de picolé, dindin, pipoca, cavaco chinês, quebra-queixos, filhós, limpador de tripa, amolador de faca, engraxates foram alçados, imediatamente, de pequenos comerciantes, a importantes micro empreendedores. Sem que ao menos percebessem, deixaram escapar a pedra de toque de qualquer relação trabalhista: a segurança. O Empreendedor não tem o direito a férias, a acidente de trabalho, a aposentadoria digna, a seguro desemprego, nem a isolamento em caso de epidemias. No mato sem cachorro, “salve-se quem puder”!
Uma das atividades mais típicas nesta selva é o Uber. Nascido em 2009, na Califórnia, o aplicativo cobre uma área de mais de dez mil cidades no planeta. A mina de ouro vem da disponibilização da tecnologia e do ganho percentual sobre cada viagem executada, mundo afora. Dizem os motoristas que a fatia do bolo é de 40% para a empresa que não gasta com gasolina, manutenção de carros e nem com os condutores. Uma mão na roda! Os motoristas são meros utilizadores desse instrumento digital e, juridicamente, são Empreendedores, cada um por si e seja o que Diabo quiser! Várias atividades outras vão sofrendo esse rápido processo de uberização, sob a pomposa égide do Empreendedorismo.
Existe, entre os motoristas de Uber, um folclore que rola solto. Boa parte deles se apresenta como trabalhadores eventuais de aplicativos. Estão sempre fazendo um bico, enquanto aguardam a reativação próxima de sua atividade fim. Os de Petrolina dizem que são do agronegócio, plantam frutas para exportação e, na entressafra, para não ficar parados, estão ali trabalhando de Uber. Alguns da Bahia falam que são corretores de imóveis e aproveitaram o período de baixa de vendas para juntar uma graninha para o fim de ano. Os de Belém dizem-se garimpeiros e entre uma Bamburra e outra, pegam no pesado na estrada. E todos, invariavelmente, falam de ganhos estratosféricos nas suas corridas, o que gera uma contínua gozação nos grupos de WhatsApp dos motoristas. Ou seja, os empreendedores sabem que a profissão é degradante, humilhante, como se vivessem numa senzala moderna, com idas diárias ao pelourinho.
Semana passada, a turma do grupo dos motoristas contou o máximo do caga-gomismo da categoria. Em Maceió, Totonho do Uber respondeu a um passageiro que lhe perguntou se estava há muito tempo na profissão. Disse-lhe, como sempre, que não, rodava uma vez ou outra, só por divertimento, para não ficar brigando com a mulher em casa. Seu ramo, na realidade, era na área digital, como administrador de redes sociais. Tinha até dois sócios minoritários, que, quem sabe, o passageiro conhecesse: Zuzu e Mumu. O rapazinho fez cara de quem procurava boi na lua. Sabia lá quem diabos era Zuzu e Mumu! Totonho, então, lembrou-lhe de que terminada a corrida iria encontrar com eles para discutir questão de dividendos.
— Zuzu é como chamo na intimidade o Marck Zukerberg que administra pra mim aquele site chamado Facebook.
E o tal de Mumu, quem é ?
— O Mumu? Oxe! Mumu, não é o Elon Musk? Vive doido pra comprar minha parte no Twitter! Vendo é porra!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri