O blackout durou apenas algumas horas. De repente, os homens foram arrancados das suas rotinas, como um carro que, a contragosto, deixa a autoestrada e envereda dor veredas íngremes e esburacadas. O celular deixou de ser um utensílio vital, o computador tornou-se um trambolho no canto da sala, a internet desconectou a aldeia global. A TV, momentaneamente, perdeu sua capacidade hipnótica e manipuladora: olhos apagados já não mais cuspiu sentenças como um oráculo de Delfos nesses tempos igualmente sombrios. Em meio à escuridão, lamparinas e velas bruxuleantes revelavam vultos aracnídeos esgueirando-se, em câmara lenta, confundindo-se com as sombras projetadas nas paredes. Carros, temerosos como seus motoristas, arrastavam-se, paquidermicamente, nos cruzamentos que haviam perdido a bússola dos sinais de trânsito. O comércio e a indústria viram-se tolhidos de seus motores propulsivos. Alguns vultos até ensaiaram colocar novamente as cadeiras na calçada, agora sem a ditadura compulsiva da televisão da sala. Súbito, o nosso mundo reduziu-se às minúsculas dimensões da nossa cidade, da nossa rua, das nossas casas, dos nossos quartos.
Incrivelmente, descobrimos que havia, sim, uma lua no céu, agora já sem a concorrência das luzes de neon. Uma lua nos últimos tempos com suas duas faces ocultas, estendeu, novamente, sua coifa argêntea, hoje, monopólio dos astrônomos, viu-se devolvida aos enamorados. O escurinho passou, novamente, a ser cúmplice da paixão e a leitura em Braile mostrou sua importância expandindo-se além dos muros do Instituto Benjamim Constant. Alargaram-se os horizontes dos outros quatro sentidos. Reaprendemos, rapidamente a revelarmo-nos, como fotografia, nas câmaras escuras deste mundo a media luz. As nuances passaram a ser reveladas e cultuadas. Na treva, pequenos detalhes, discretos matizes defenestram, muitas vezes, percepções até então desconhecidas. No breu, como na vida, essas percepções são meros simulacros, silhuetas de uma verdade perseguida e, eternamente, inalcançada.
A penumbra nos trouxe a revelação de que existe sim, um outro mundo vívido à nossa volta, longe dos holofotes da realidade cotidiana. Somos meros fantasmas neste planeta, vagando, caoticamente, entre luzes e sombras.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri