“Na infância… Bastava sol lá fora e o resto se resolvia.”
Fabrício Carpinejar
Toda manhã, despertado com aquele gosto de cabo de guarda-chuva na goela, olho para o espelho e chego a não reconhecer a imagem nele refletida. Remeto-me, imediatamente, a Rubem Braga: “Se o espelho refletisse bem, não refletiria certas imagens…” Do outro lado me olha uma figura estranha: cabelos enevoados e em desalinho; rosto atravessado por sulcos profundos, como os açudes secos do sertão; olhos com o brilho sugado por algum buraco negro e, por trás, uma alma cheia de canyons esculpidos tela talha do tempo. Quem diabos é esse senhor que já não é senhor dos próprios momentos e vontades? Como ele passou a morar, sem que eu ao menos o compreendesse, na lâmina do espelho? Por alguns ângulos aparenta traços familiares: um sorriso leve como voo de colibri que um dia saltou dos lábios do meu avô; um olhar profundo e inquisitório de madre superiora que algumas vezes vazava da fisionomia firme da minha avó; um discreto esgar do canto superior do lábio, nos momentos de tensão, que escapava do rosto da minha bisavó Madrinha Dona. No mais, aquele velho surge perfeitamente inusitado, um invasor como a “Loura do Banheiro” tão temida pelos meninos do meu tempo. Que forças sobrenaturais permitiram que se escondesse logo atrás do cristal do espelho?
Custa a acreditar que , de alguma maneira, aquele senhor idoso aprisiona com sua carapaça um menino. É como se tratasse de uma gestação ao contrário. A criança não se desenvolve naquele que poderia ser um novo útero, para dar-se uma nova luz. O bebê vê-se enclausurado impedido de nascer e ganhar o mundo. É como um retorno à barriga primal para um desnascer. Sua incansável mobilidade será pouco a pouco levada à estática pela ferrugem dos dias. Sua poética inocência será turvada pela lava incandescente e antipoética do cotidiano. A criatividade e bulício serão embotados pela sucessão cansativa das linhas de montagem. Num determinado instante, o bebê retroagirá, em sua contra gestação, até alcançar a fase de óvulo. Neste fatídico dia, a imagem do fundo do espelho passará a ser real, já não mais existirá o menino, apenas o velho com sua casmurrice e seus achaques. Lá estará ele sozinho de boca mole balbuciando a contagem regressiva do big-bang.
Por enquanto, o velhinho continua me parecendo enigmático e misterioso do outro lado do espelho. Mas vou aprendendo a conviver com ele, um dia há de ser meu avatar. O menino ainda está vivinho aqui e não percebo como se aprisionado nos seus grilhões. Ainda agora o vi abrir a porta e sair ansioso procurando pelos cantos onde possam ter deixado o presentinho do Dia das Crianças.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri