Serrinha dos Nicodemos carregava a fama terrível de ser um refúgio incrível de ladrões. Ali dizia-se existir o paraíso dos amigos do alheio. A cidadezinha pequena tinha, no entanto, um rigoroso código de ética: serrilhense não afanava de serrinhense. As grandes vítimas, em geral, eram os raros visitantes que chegavam à vila, principalmente mascates, representantes comerciais, viajantes que por ali passassem. A reputação desabonadora, em verdade, foi disseminada por outras cidades próximas, principalmente Bertioga e Matozinho, onde, certamente, residiam as mais frequentes vítimas dos larápios de Serrinha. Foi ciente dessas aleivosias que Simão Florêncio, um caixeiro viajante com larga folha corrida de esperto e desarnado, adentrou a vilazinha. Trazia o apurado de mais de três semanas, vendendo picuaios sertão adentro, chegava com o bolso estufado com mais de dois contos de réis. Simão portava a fama de sabido e rapa de sola. E tomou para si uma missão que possuía as dificuldades de um décimo terceiro trabalho de Hércules: “Tô com o bolso cheio, quero saber quem em Serrinha vai ter a petulância de me roubar! Eu quero é ver!”
Diante dessa decisão Florêncio dirigiu-se à Praça Central Hemengardo Capivara e, aproveitou uma rodinha de desocupados, reunida ali e, como quem não queria nada, fez a pergunta básica. Apresentou-se, disse que era de fora e soubera da folha corrida da vila: um antro de larápios. Pediu que espalhassem: trazia uma grana razoável que apurara no comércio ambulante. Pediu, então, tomando cuidado no bolso e no molho de dinheiro que ali dormia, informações sobre os locais mais perigosos da região, onde ele corria mais o risco de ver surrupiados seus pertences. Os pracianos não pareceram chateados com a interrogação, foram muito receptivos e, consensualmente, apontaram os pontos mais críticos da vilazinha: a feira semanal, a festa da padroeira N. S. do Bom Parto, que estava acontecendo naqueles dias, e a missa das dez horas do domingo, na igreja matriz. Alertaram para o alto índice de furtos nesses locais. Semana passada, lembrou um velho recostado no banco, um menino passou numa bicicleta numa velocidade incrível e quando chegou em casa deu conta de que tinham roubado a corrente, o guidão, os pedais e a câmara de ar da roda traseira.
Simão lembrou, claramente, que aquilo era coisa para acontecer com abestados e otários. Ele era esperto, negociante árduo e desenrolado e que mostrava como ninguém iria fazê-lo de mané: Duvide-o-dó! A partir dali resolveu fazer a peregrinação pelo terreno minado. Andou pela feira de Serrinha, espremendo-se em meio à turba, e ficou feliz quando caqueou o bolso, no fim da rua, e percebeu que a maçaroca de dinheiro estava lá, do mesmo jeitinho, intocada. Cadê os ladrões da cidade? — pensou com suas algibeiras. Meteu-se na Festa de N.S. do Bom Parto, no meio da procissão apinhada de fiéis, apalpou, no fim da caminhada, o molho de notas e, mais uma vez, sorriu: estava lá, do mesmo jeitinho, intacto! Cadê os mãos leves de Serrinha? Para fechar o tour, Simão foi à missa de dez horas, num domingo festivo. A cena se repetiu: ao sair da celebração, sondou cuidadosamente o monte de dinheiro no bolso direito da calça e estava lá, inviolado. Dirigiu-se, então, â praça e enfrentou as rodas de conversa:
— Tem lá ladrão nessa cidade? Cadê os gatunos daqui? Rodei pelos cantos mais perigosos que vocês falaram e o maço de dinheiro está aqui no bolso da calça, do mesmo jeitinho. Que diabo de fama é essa?
Sentado numa beirada de banco, incrédulo, um rapazinho sorriu e refez a honra maculada de Serrinha:
— Desde trezontonte que esse monte que o senhor leva no bolso não é dinheiro, não. É um baralho e tá faltando o sete de copas e a dama de paus!
Por J. Flávio Vieira. Médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
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