O governo Bolsonaro revogou nesta terça-feira, 5, o decreto que estabelecia o zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar e impedia a expansão do cultivo por áreas sensíveis do País, como Amazônia e Pantanal. O decreto 6.961, de 2009, foi um dos principais fatores que tornou o etanol de cana brasileiro em um diferencial para as exportações, justamente por proteger os biomas de desmatamento.
A revogação, publicada nesta quarta no Diário Oficial da União, foi assinada pelo presidente Jair Bolsonaro, pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e pela ministra da Agricultura, Tereza Cristina. A medida contraria a visão de cientistas do setor, de ambientalistas e até de parte do setor produtivo.
No anúncio, feito em cerimônia no Palácio do Planalto que marcou os 300 dias de governo, foi dito que o objetivo era simplificar e desburocratizar o plantio de cana-de-açúcar. “De um lado, o Decreto encontrava-se defasado após a aprovação do Código Florestal. De outro, novas tecnologias no uso racional da água, como gotejamento e fertirrigação, e o desenvolvimento de novos equipamentos de colheita mecanizada indicavam que os parâmetros que subsidiaram o zoneamento não eram mais sustentáveis em razão das novas tecnologias no uso racional de água e o desenvolvimento de novos equipamentos da colheita mecanizada”, informou o Ministério da Agricultura (Mapa).
No final de agosto, porém, quando a Amazônia enfrentava as piores queimadas para aquele mês dos últimos nove ano, Bolsonaro chegou a dizer que iria atender um pedido de Tereza Cristina para ampliar as áreas de plantio e que estava ciente de que isso poderia gerar uma repercussão ruim.
Diante das discussões no governo federal, pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais encaminharam um estudo ao Mapa reforçando que há no Brasil área suficiente para a expansão da cana sem precisar avançar sobre os dois biomas.
“O etanol é o único biocombustível de primeira geração aceito pela União Europeia, Japão e outros países como medida de redução das emissões de efeito estufa”, comenta o pesquisador Raoni Rajão, que liderou a análise enviada ao Mapa. “O etanol de milho, por ter um balanço energético menos vantajoso, ou seja, emite gases de efeito estufa em proporção maior do que remove durante o crescimento, é excluído. Isso significa que o Brasil tem uma vantagem competitiva importante perante a seus concorrentes, contato que possa garantir que a cana-de-açúcar não gere desmatamento”, diz.
“A manutenção desse zoneamento é condição necessária para que a União Europeia mantenha a cota (futura) de importações de 850 milhões de litros do Mercosul”, continua o pesquisador. Ele fez um outro estudo, encomendado pela Comissão Europeia, que apontou que a cana só é de baixo impacto justamente por causa do zoneamento mais restritivo.
Na análise para o Mapa, ele demonstrou também que o bioma amazônico é pouco favorável ao plantio de cana. O Brasil possui cerca de 10 milhões de hectares de área plantada com cana-de-açúcar – 5 milhões estão na Mata Atlântica, 4,8 milhões no Cerrado (em ambos os casos, principalmente em São Paulo e Minas Gerais). A Amazônia abriga apenas 144 mil hectares, cerca de 1,5% do total da área plantada no Brasil, com as plantações concentradas no sul do Mato Grosso.
“Tendo em vista a pouca representatividade das lavouras de cana-de-açúcar no bioma Amazônia, da baixa favorabilidade, da disponibilidade de áreas para expansão dessa cultura em outros biomas e do grande risco econômico da mudança do zoneamento é fortemente recomendado que seja mantido o atual zoneamento estabelecido pelo Decreto 6.971/2009”, concluiu a análise.
Para o engenheiro agrícola Eduardo Assad, da Embrapa, que elaborou o zoneamento há dez anos, a decisão é “lamentável”. Ele e colegas elaboraram o mapeamento a pedido do então governo Lula que queria saber qual era a possibilidade de expansão da cana no País sem comprometer Amazônia e Pantanal. “Foi um acordo na época entre Ministério do Meio Ambiente e Mapa. Pediram para buscarmos essa possibilidade e encontramos 54 milhões de hectares a mais por onde poderia ocorrer essa expansão”, explica.
“Agora, de repente, abre-se uma fronteira para algo que hoje responde por apenas 1,5% do etanol produzido no País. Mas é o fato de o zoneamento proteger a Amazônia que garantiu a imagem do etanol brasileiro lá fora. E não tem o menor sentido para isso. É querer trabalhar com uma área que tem restrições de solo, de clima, de transporte. Não vejo nenhuma justificativa técnica”, comenta.
O Estado apurou que o Mapa divulgou nesta quarta esclarecimentos para o setor. Afirmou que a revogação “teve como objetivo permitir o retorno de investimentos ao setor sulcroenergetico, suspensos desde 2009, com objetivo de ampliar o fornecimento de energias e combustíveis renováveis em regiões que carecem de abastecimento destes produtos, como Nordeste e Amazônia”.
Ressaltou que “a questão não deve ser compreendida como permissiva de novos desmatamentos”, uma vez que o contexto atual seria diferente de 2009. “Atualmente contamos com o Código Florestal e principalmente o programa Renovabio, que não permitirá certificar usinas que consomem cana produzida em área após 2018″, afirmou a pasta.
O ministério também argumentou que existem diversas usinas de etanol de milho que recebem crédito naquela região, mas não as de cana, portanto, com os novos instrumentos de regulamentação que garantem a não expansão de cana sobre áreas preservadas, não há motivos para suspender o crédito à essas usinas que já estão estabelecidas nessas regiões”.
Assad rebateu que era possível fazer uma atualização no zoneamento para incluir algumas possibilidades, como em Rondônia e Roraima e em áreas com declividade maior por causa dos novos maquinários. “Mas abrir para toda a Amazônia não é razoável.”
Indústria atenua opinião
O zoneamento da cana chegou a ser formalmente defendido pela Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar) e pelo Fórum Sucroenergético em março no ano passado. As entidades se manifestaram contrariamente a um projeto de lei do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) que queria liberar o plantio de cana na Amazônia alegando que isso poderia prejudicar a imagem do etanol no exterior. O projeto acabou engavetado, mas a ideia voltou a ser aventada no governo atual.
Nesta quarta, porém, o novo presidente da Unica, Evandro Gussi, aliviou o tom. Em artigo publicado no site da entidade ele disse que o zoneamento teve um papel no passado de proteger a bioma, mas que hoje, com o Renovabio – programa de incentivo aos biocombustíveis –, essa proteção estaria garantida, uma vez o programa estabelece política de desmatamento zero. Segundo Gussi, houve um “amplo consenso entre setor produtivo e governo” de que o Renovabio “seria política de desmatamento zero ‘na veia’”.
E continua: “Para ingresso no programa, a grande aposta do setor, nem mesmo o desmatamento permitido em lei será aceito. Desmatou, está fora do Renovabio, pois o etanol, e todos os nossos produtos, devem ser sustentáveis do início ao fim”.
“Esse foi o espírito da revogação do chamado Zoneamento Agroecológico da Cana-de-Açúcar. Esse instrumento que teve seu papel no passado, ficou justamente lá, um passo atrás, servindo apenas como mais um dos tantos arcabouços burocráticos brasileiros diante da modernidade do Código Florestal e do comprometimento absoluto do setor em avançar ainda mais naquilo que fazermos de melhor: contribuir, mesmo quando o sol se põe, para que o Brasil seja o líder global da mobilidade sustentável”, escreveu.
Ao Estado, ele afirmou que é zero o risco de a revogação do decreto levar a uma maior pressão sobre a Amazônia. “Eu faço um desafio para que daqui cinco anos você me diga quanto tem de cana na Amazônia. Não vai ter, porque o setor está em um outro nível de busca de sustentabilidade, que é o Renovabio. E ele preconiza o desmatamento zero, mesmo o legal. E não se planta cana na Amazônia porque é úmido demais, chove demais.”
Questionado sobre qual o sentido, então, de revogar o decreto, Gussi afirmou que é apenas um processo para diminuir burocracia.
Em março do ano passado, a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, grupo que reúne o setor produtivo e organizações ambientalistas, também havia divulgado um documento criticando a ideia de expansão pela Amazônia que, para a entidade, “contraria os esforços feitos pelo governo federal, setor produtivo e sociedade rumo à produção sustentável de cana-de-açúcar no país”. Para o grupo, a mudança poderia causar uma pressão por mais desmatamento e afetar a imagem da cana para o mercado externo.
Na época, o Museu Paraense Emílio Goeldi também divulgou uma nota técnica reforçando que a permissão pode aumentar a pressão sobre o desmatamento e ainda afetar a oferta de água.
Mudanças climáticas
Nesta terça-feira (5), um estudo publicado com estimativas sobre as emissões de gases de efeito estufa no Brasil, mostrou que o País teve uma queda de 5% nas emissões do setor de energia no ano passado em boa parte causado porque houve um aumento do consumo de etanol em detrimento de gasolina. Essa queda evitou que o País fechasse o ano com alta nas emissões.
O etanol é considerado um combustível mais verde porque as emissões causadas pela queima do combustível nos carros acabam sendo compensadas com o crescimento da cana, que absorve CO2 da atmosfera. Mas se esse etanol for obtido a partir de plantio em área onde antes era floresta, essa vantagem deixa de existir.
“Com seu ato, os dois ministros, tidos como a “ala razoável” do governo, expõem dois biomas frágeis à expansão predatória e economicamente injustificável da cana e jogam na lama a imagem internacional de sustentabilidade que o etanol brasileiro construiu a duras penas”, afirmou em nota o Observatório do Clima.
O ex-ministro do Meio Ambiente Carlos Minc, que comandava a pasta na época da publicação do zoneamento, também criticou a decisão de Bolsonaro em sua conta no twitter. “Isso mancha o etanol brasileiro no mercado mundial. Além de abrir a porteira do Pantanal, da Amazônia e das áreas de produção de alimentos à monocultura e aos agrotóxicos, quebra a biodiversidade e os empregos, pelo boicote que o etanol enfrentará na Europa”, escreveu.
Fonte: Estadão Conteúdo