Uma mulher natural de Juazeiro do Norte escreveu uma carta para relatar que viveu, durante 11 anos, abusado sexual pelo próprio pai. Logo após o relato ter repercutido na mídia, durante a última semana, a caririense acabou descobrindo que o suspeito teria feito pelo menos mais cinco vítimas – todas carregando a mesma dor e com a infância violada pelo mesmo homem.
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A cearense, com nome preservado, sofreu os abusos entre 1986 e 1996, quando vivia com a família no Cariri. O homem a quem chamava de pai teria começado a abusá-la ainda quando ela era criança e só parou quando a vítima iniciou a juventude.
Só recentemente, enquanto adulta e depois de anos de terapia, a vítima conseguiu unir forças para falar sobre o que viveu e teve a ideia de escrever uma carta, desabafando nas linhas a dor que guarda há mais de uma década.
“Antes eu me sentia culpada, me sentia envergonhada (…) Quando eu terminei (de escrever a carta) foi uma sensação de que eu não tinha mais aquele peso nas costas. Antes eu não conseguia falar, hoje, sim. A vergonha e a culpa tomavam conta de mim”, relembra.
No pedaço de papel, a cearense descreve que a primeira vez que foi abusada pelo pai foi logo após um almoço em família, dentro de um quarto na casa da avó paterna. “Foi algo bem sorrateiro, chegou como uma águia. Esse tipo de ave se vale de suas enormes garras para pegar e levar embora suas presas. Os predadores são maus! E foi lá, dentro desse quarto, que o primeiro abuso aconteceu”, relata em carta.
Depois do ocorrido, a mulher conta no documento que ficou “por mais de uma semana com os pensamentos distantes, sentindo uma tristeza profunda, medo e uma vontade de gritar”, passando a apresentar um baixo rendimento escolar na época. Depois desse abuso, no entanto, vieram outros.
“Ele não me ameaçava e nem pedia pra eu não contar pra ninguém. Na verdade, ele nem precisava pedir segredo, pois sua presença hierárquica e seu tom de voz já se encarregavam de me paralisar (…) Ele parecia fazer ser algo natural. Ele é ardiloso. É um monstro. (…) É tão perverso que depois de algum tempo continuava a fazer essa monstruosidade sem nenhum pudor. Era tão ousado que os abusos passaram a acontecer enquanto meus irmão dormiam na mesma cama onde o ato estava sendo praticado. Hoje eu sei que o objetivo desse monstro (dessa águia) era incentivar o incesto entre nós”, conta.
Foram 11 anos sendo violentada no seio familiar. “Até hoje luto para tentar ter uma vida adulta saudável mentalmente, mas tenho dificuldades para confiar nas pessoas. Luto todos os dias contra essa tristeza que toma conta dos meus pensamentos. Já questionei a Deus onde Ele estava nos anos (em que sofreu abuso) (…) Fora os anos que não sou capaz de lembrar, pois estão muito bem escondidos no meu inconsciente e só uma vez por outra vem uma nebulosa lembrança”, desabafa na carta.
Relato trouxe à tona mais cinco vítimas
No início, a carta surgiu com o objetivo de desabafo, para que a cearense “descarregasse um peso”. No entanto, depois ela teve a ideia de divulgar o documento na imprensa para que outras possíveis vítimas do suspeito tivessem coragem de falar sobre o caso, formando uma rede de denúncias.
A ideia funcionou. Depois da repercussão da carta, cinco mulheres a procuraram para dizer que também foram abusadas sexualmente pelo homem. Todas teriam sofrido a violência na mesma época, durante a infância. Uma das vítimas, inclusive, é uma familiar da cearense que escreveu o documento.
“Eu sei que existem mais (vítimas). Eu sei que há pessoas que estão silenciosas porque não estão confortáveis pra falar e eu entendo perfeitamente (…) A vítima realmente se sente muito culpada, envergonhada, mas eu espero que essas pessoas tenham coragem”, diz a caririense.
Além de buscar encontrar mais vítimas, a cearense também pretende fazer um alerta sobre crimes sexuais contra crianças, destacando a importância de que pais prestem atenção em quem convive com seus filhos. No seu caso, por exemplo, ela diz ter chegado a contar, ainda na infância, o que estava acontecendo para a mãe, mas a genitora não quis acreditar no que ela dizia e não confrontou o agressor.
“Eu considero que a minha mãe até certo ponto também foi vítima. (Ela) era apaixonada por ele, mesmo sabendo que ele era na época ignorante, grosseiro. A nossa mãe trabalhava muito, sempre procurou nos proporcionar escola boa, roupa boa. Mas quando eu criança abriu a boca pra falar pra ela, ela não acreditou. Ela deu de ombros”, relembra, dizendo que hoje mantém uma relação distante com a mãe.
Pena prescreveu, mas mulheres seguem em busca de justiça
A fonte ouvida pela reportagem foi recentemente até a Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), em Juazeiro do Norte, abrir um Boletim de Ocorrência (B.O). De acordo com ela, as outras mulheres violentadas pelo homem também estão se preparando para procurar justiça pelas violências que sofreram.
No entanto, como atualmente o agressor tem mais de 70 anos, pelo código penal ele só pode arcar por crimes que tenha cometido em um prazo de dez anos. Ou seja, como os abusos foram cometidos há mais de uma década, o suspeito não pode responder judicialmente, pois a pena prescreveu.
O Povo encaminhou um e-mail na noite da última quinta-feira, 18, à Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS-CE) solicitando mais informações a respeito do caso. Contudo, até o fechamento da matéria não houve resposta.
Defesa de filha abusada pelo pai alerta sobre comportamento do homem
Segundo a defesa da cearense que escreveu a carta, mesmo com a pena prescrita, denunciar os crimes cometidos pelo suspeito é importante para alertar sobre o comportamento dele, que segue livre. Vítima aponta que o homem atualmente se divide entre moradias de Juazeiro do Norte e Pernambuco.
“Vejo esse caso como ainda não perdido. Eu considero que ainda exista espaço para que eu, como advogado, possa proceder perante as delegacias. No sentido de apurar justamente crimes de pedofilia e crimes cibernéticos (que o suspeito possa ter cometido). Porque se trata de um criminoso habitual, porque pelas inúmeras vítimas que ele colecionou, ele demostra que tem um método, uma maneira recorrente de atuar”, conta Gabriel da Ressurreição Galdino, advogado da caririense.
O representante ainda cita que as denúncias são necessárias para ajudar a encontrar possíveis vítimas recentes. “Há uma possibilidade de que talvez esse infrator esteja atualmente cometendo crime, só que ainda não foi aos olhos do Estado, mas cabe apuração.”
A vítima que escreveu a carta diz saber que o pai não deve mais responder judicialmente pelo que fez com ela. No entanto, a carirense guarda a esperança de que o relato ajude outras mulheres a encontrarem justiça pelo sofrimento emocional e psíquico causado pelo homem. Além disso, espera que mães, pais e avós sejam alertados de que, muita vezes, o “monstro” está próximo ou em meio ao próprio seio familiar.
Em razão desse propósito, ela finaliza a carta com um apelo: “É impressionante como quase 100% dos casos (de violência sexual) é de alguém próximo à família. Posso afirmar que estou sendo “salva” por ter tido a coragem, a responsabilidade e a atitude de quebrar esse silêncio. Torço para que em algum momento a justiça seja feita e que alguma vítima recente possa ler esse relato e denuncie! Não permitam que essa águia sobrevoe grandes altitudes e escolha mais uma vítima vulnerável, mais uma criança”.
Por Gabriela Almeida
Fonte: O Povo