Na semana que antecedeu o Dia das Mães, recebi, de um parente de Várzea Alegre, um convite típico das terras de Papai Raimundo. Uma foto de lambe-lambe, batida nos anos 20, com o meu bisavô paterno André Duarte, minha bisavó Balbina e seus dez filhos, no Sítio Mocotó, de que eram proprietários. O convite dizia do centenário da foto histórica e marca, para 26 de agosto, a repetição da mesma fotografia agora com os incontáveis descendentes do querido casal. Lá estarei na comemoração histórica, brindando ao milagre da vida e da multiplicação dos pães e dos peixes.
Conheci apenas uma bisavó e este, sei, é um privilégio de poucos. Era avó da minha mãe e morava no Sítio Bocaina aqui em Crato, no Belmonte. Atarracada, nariz proeminente, doce com os netos, não escondia, no entanto, uma personalidade fortíssima e dominadora. Conhecida como Madrinha Dona, construiu uma das primeiras piscinas no pé da serra, antes dos clubes serranos e era o playgound da meninada da família. Era já viúva por duas vezes. Fora deserdada quando do casamento da filha única e teve que recomeçar a vida do zero, com o segundo marido, tocando uma pequena gleba de terra que adquirira a duras penas. Uma matrona que prescindia de maridos para o sustendo, mandona, administrava a fazenda e o engenho com mão de ferro. Os dois esposos que possuiu, segundo consta, tiveram que rezar por sua cartilha ou correriam o risco de serem exemplados por palmatória. Lembro apenas de uma tia, Maria Zélia, que parece ter herdado a mesma fortaleza e resiliência de Madrinha Dona.
Sei no entanto, das histórias da outra bisavó, Balbina Raulina, Mãe Dondon, aquela que aparece na fotinha que terá sua repetição histórica em agosto. Sistemática também, de pouca conversa, ao contrário de Vô André, meu pai dizia que nunca a viu beijar um neto. Tinha perto da cadeira, onde sentava, uma cumbuca em que guardava macaúbas maduras e que distribuía com a meninada quando lhe tomavam a benção. Administrava o Mocotó com mão de ferro. Duas tias minhas, irmãs do meu pai, puxaram à avó: Laís e uma outra Balbina. O temperamento forte lhes ficou como herança. Lembrei de Madrinha Dona e Mãe Dondon neste Dia das Mães. Num tempo em que o destino das maatriarcas era a submissão, o “sim-senhor!” , uma mera fábrica de fazer e criar filhos, bom saber dessas mulheres fortes, insubmissas, matronas que mostravam, claramente, que a sociedade sempre foi muito mais matriarcal do que patriarcal como sempre se pensou. Essa característica sempre foi bem mais velada, com o feminino trabalhando, estrategicamente, nas entrelinhas, na manha, com jogos e artifícios de sensualidade. Mas havia, também, as guerreiras como Madrinha Dona , Mãe Dondon, Bárbara, Fideralina que não precisavam esconder sua força e seu poder de mando. Os beijos e afagos que não conseguimos arrancar delas recebemos multiplicados em lições de insubmissão, de enfrentamento das vicissitudes, de entendimento de que a vassalagem, a subserviência, a servidão são atributos das almas menores. Ficamos impregnados com seu sabor de geleia com pimenta.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
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