“Com a roupa encharcada e a alma repleta de chão
Todo artista tem de ir aonde o povo está
Se foi assim, assim será
Cantando me desfaço e não me canso
De viver nem de cantar.”
Milton Nascimento/Fernando Brant
Uma das canções mais belas de Milton, com letra de Fernando Brant, fala sobre a magia da profissão itinerante dos cantores e instrumentistas, morando nas estradas do mundo e levando o enlevo da música ao coração do seu povo. Fascinante esta trajetória das bandas, emoldurando os bailes da vida, cifrando a trilha sonora de muitas gerações de pessoas, criando, cuidadosamente o clima romântico para a paquera, para o namoro, para a paixão. Cada um de nós tem em si a trilha pessoal do filme da nossa vida, a dos momentos mais amorosos, dos mais tristes, dos mais alegres e felizes. Ouvir tocar uma canção no rádio ou no celular nos remete, imediatamente, como num bólido, para aquele instante único e eterno vivenciado e que nos acompanha ao longo de toda existência: uma dança, um beijo, uma perda, um desejo, um fascínio, uma farra. Houve um momento, menos tecnológico, em que as festas, os bailes, as tertúlias, os saraus, vesperais e matinês dependiam diretamente das bandas e dos seus instrumentistas. Os Conjuntos Musicais viviam comendo a poeira da estrada, em carros improvisados, por estradas esburacadas, carregando seus instrumentos e amplificadores precários de vila em vila, de arrabalde em arrabalde: tinham que ir aonde o povo estava. E tocavam nas praças, nas palhoças, nos cinemas, em pequenos clubes, em bares, em casas, em sítios, em latadas, onde houvesse público ali eles estavam, estimulados por pequenos cachês que mal cobriam os custos da viagem. E, como os palhaços dos circos, os especialistas em itinerância, deviam estar sempre alegres, com alta energia, com som leve e solto, independentemente do estado de espírito de carregassem. A amargura e a tristeza, os problemas pessoais tinham que ser deixados nas pensões de beira de estrada onde se arranchavam, não podiam subir ao palco.
Na semana passada, o Cariri perdeu um desses monstros sagrados das estradas da vida e da magia dos palcos improvisados: Hugo Linard. Tecladista inspirado, músico intuitivo desde a mais tenra infância, ele encabeçou as bandas mais seminais da nossa região. Eclético, tocava todos os ritmos, passeava galhardamente pelo clássico, pelo Nordestino, pela MPB, pelo frevo, pelo música latina, francesa, italiana, pelo blues e pelo jazz, sem quaisquer sobressaltos. Apenas não condescendia com o mal gosto. Tê-lo no palco era a certeza absoluta de que teríamos poesia em movimento. Hugo carregava consigo um compêndio inteiro de histórias desse safari sonoro de setenta anos pelas veredas do mundo, muito se perdeu quando, nesta semana, as peças do teclado emudeceram. Levando uma roupa encharcada e uma alma repleta de chão, o artista deixa uma obra imorredoura: criou a música incidental propícia à paixão, à sedução e ao afeto dos corações caririenses. Quantos olhares apaixonados propiciou? Quantos beijos ardentes favoreceu? Quantos amassos facultou , entre uma e outra nota, entre um e outro acorde, entre uma e outra frase musical escolhidos, cuidadosamente, para a construção do clima necessário a meteorologia do romance?
O céu agora perderá aquela morosidade e silêncio etéreos, Hugo vai mostrar que só com música um lugar pode merecer o nome de paraíso.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri