O Carnaval sempre nos abre novas perspectivas sobre o grande baile de máscaras que é a vida. A cada dia, a cada momento, precisamos pegar no guarda-roupas a fantasia adequada ao baile a que somos obrigados a participar. Na entrevista de emprego, a roupa sisuda e a cara de seriedade e responsabilidade necessária para impressionar o RH; para a solenidade religiosa, as vestes de penitente, a face transcendental, o ar piedoso e casto; na família, o discurso doce ou autoritário, a fácies de mandatário de uma república de bananas; na mesa de bar, o deboche, as conversas rasgadas, o discurso machista, a pose de estraçalhador de corações; no campo de futebol a paixão à flor da pele, o ímpeto pronto ao ataque, como se num campo de batalha; no trabalho, o ar compenetrado, sério de funcionário padrão. Este grande palco da vida é, assim, um teatro de máscaras e só conhecemos bem o personagem desempenhado por cada um dos artistas no tablado, pouco sabemos da essência real dos atores. Talvez, por isso mesmo, tanto nos surpreendemos e nos decepcionamos com posturas e atitudes de amigos e companheiros de caminhada: Quem diria? Quem poderia imaginar, com aquela cara de beata! Santo com pés de barro! Lobo em pele de cordeiro!
Estamos, a cada segundo dessa vida, desempenhando papéis previamente estipulados. O script, ao nascer, já nos é jogado às mãos, não cabe discutir, apenas decorar as falas, as marcações, as deixas. E, claro, escolher o figurino, a máscara, a maquiagem próprios para cada cena previamente determinada. A dramaturgia já foi escrita pelas igrejas, pelas famílias, pela tradição, pela política, estabelecida cuidadosamente em códigos de ética e de postura. Ensaiando e seguindo direitinho o preestabelecido há a garantia mínima de você alcançar o Sangri-Lá: um empregozinho, uma casa, um amor sinceramente enlatado e um monte de penduricalhos de consumo que nos prometem ser a chave única da felicidade. Mas se você resolver, neste concerto, fugir da partitura, ao invés de executar música clássica, optar pelo rap, tem fortes possibilidades de ser expulso da orquestra. Talvez você, assim, se sinta mais liberto, mais realizado, com a sensação de estar traçando um caminho pessoal e não o da manada, mas pagará, certamente, um considerável preço por nadar contra a corrente. Como Chapeuzinho Vermelho você tem sempre à sua frente os caminhos do rio (opção indicada pela tradição) ou o da floresta e, nesta última trilha, se você escolher, o Lobo Mau estará à espreita pronto para te devorar junto com a vovozinha.
Você poderá optar pelo tédio, como lembrou Baudelaire, ou pelos paraísos artificias: o álcool, o ópio e outros anestésicos que tirem a dor na travessia. E, por isso mesmo, sejam cada vez mais procurados. Eles põem por terra essas fantasias e máscaras impostas e nos permitem observar nossa imagem desnuda, com nossas imperfeições e acertos, sem os filtros fornecidos pela sociedade. Mas é triste sempre imaginar que só é possível suportar a vida conforme nos foi prevista e determinada, sob anestesia.
Talvez, por isso mesmo, o Carnaval seja uma festa tão amada e querida. Durante quatro dias, você pode eleger as máscaras e fantasias que irá usar, sem que ninguém interfira. Príncipe, Mendigo, Homem, Mulher, Papangu, AlaUrsa, Odalisca, Velho do Rio… O Carnaval é o único momento em que você não precisa usar fantasia, você pode ser você mesmo.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri