Uma das mais perturbadoras visões da humanidade foi depreendida por Hannah Arendt quando do julgamento do criminoso de guerra Eichmann, em Jerusalém, que redundaria num dos livros mais reveladores do Século XX, em 1963. Arendt teve a coragem de botar o dedo na ferida e, como judia, escancarou verdades indigestas ao seu povo, o que desencadeou intrigas que não se dissiparam até a morte da filósofa em 1975. Entre elas a participação cúmplice de lideranças judias na caravana da morte chamada de Holocausto. E, o mais terrível de tudo, Arendt percebeu que não havia nada de diabólico nas atitudes nazistas que levaram ao genocídio do povo judeu. Todos os que executaram as ordens tenebrosas que exterminariam pura e simplesmente mais de seis milhões de vidas, nos campos de concentração, eram cidadãos comuns, meros burocratas que estavam tão-somente cumprindo ordens. Muitos que se dedicavam a suas famílias, beijavam seus filhos, batiam continência para a bandeira, cantavam hinos de glória, rezavam em cultos e missas e, durante o trabalho, sem nenhum sentimento de culpa, acendiam os fornos crematórios e liberavam o Zyklon B para a Solução Final. A constatação de Arendt é cruelmente perturbadora, exatamente por isso. O impensável que aconteceu não se deveu à maldade de um punhado de pessoas ou de alguns grupos extremistas, brotou de pessoas perfeitamente comuns, dessas que a gente encontra todo dia no supermercado e que, submetidas a condições de mando, a alguns discursos de lavagem cerebral, como robôs, executam os mais vis atos, dignos das aves de rapina e dos chacais. Ou seja, Arendt deixou claro que tudo o que acontecera no Holocausto, não tinha sido uma coisa contingencial, dependente da encarnação diabólica de alguns, o que ela chamou de Banalidade do Mal. A bomba, meus amigos, continua armada. Depende, segundo ela, de um vácuo no pensamento crítico e, como dizia Gramsci: O Mundo Velho agoniza e o Mundo Novo tarda e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros.
Hoje, então, com Mídia de Massa, com a comunicação que não mais tem fronteiras, com filtros impossíveis de separar o trigo, do joio e das escumalhas, onde a informação e a contrainformação já andam juntas e de mãos atadas, as possibilidades se multiplicam. As ordens vêm difusas, de bocas que já não identificamos. O certo e o errado vêm ficando cada vez mais relativos. Vemos, no mundo todo, o crescimento de grupos extremistas, defendendo os temas mais anticivilatórios possíveis. Há pouco tentamos nos livrar, no Brasil, de um governo antidemocrático, defensor de pautas que já tinham sido execradas pelos Neandertais. E a Banalidade do Mal pôs, novamente a cabeça de fora, com o genocídio programado do povo Yanomami. Mais de quinhentas crianças mortas, deliberadamente, por inanição e incúria governamental. As imagens dantescas são quase que uma reprodução das que foram tiradas oito décadas atrás nos campos de Auschwitz e Dachau. Os responsáveis diretos são aqueles mesmos burocratas que esperneiam o nome de um Deus, com livros sagrados debaixo do braço, defendendo a pureza da raça branca e um território que a só eles acham que pertence. Não têm qualquer sentimento de culpa, se acham certos, corretos e em missão divina. Acreditam que aqui estão para redimir o país!
A bomba vai continuar armada, mas precisa que o pavio seja arrancado perenemente. Antes que o estopim seja aceso mais uma vez. E é preciso levar os Hitlers da vez para Nuremberg, afastá-los do convívio da Civilização. Os crimes cometidos não foram contra os Judeus e os Yanomamis. São crimes contra a Raça Humana, contra a Humanidade, que nos jogam, novamente, na vala comum da irracionalidade.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri