Qualquer um de nós, ao adentrar os umbrais deste mundo, chegamos um pouco como imigrante. Precisamos, rapidamente, nos adequar a verdades que vieram se consolidando por séculos. Por todos lados há placas de sinalização, indicando caminhos que podem ou não ser percorridos; cercas e valas que limitam nosso caminhar. Há marcos culturais, penais, civis, códigos de conduta e postura, determinações políticas e econômicas que nos são ofertados como verdades absolutas. Rapidamente, como cães amestráveis, somos colocados nos trilhos pela família, pela escola, pela religião, pela universidade. Traçam-nos, rapidamente, a trajetória única a seguir, afora isso nos são apresentados outras únicas estações possíveis: o descarrilamento e o desastre. Este prato feito que nos é servido, sem possibilidade de escolha, para uns pode parecer saboroso e confortável, para alguns poucos, indigesto e intragável. Há espíritos libertários que não aceitam andar por trilhos fixos e contemplar as mesmas paisagens infinitamente. Sabem, intuitivamente, que verdades novas precisam ser reconstruídas para novos tempos e que o mundo precisa ser reformado e refeito à chegada de cada geração. Erros passados precisam ser abolidos, novas picadas precisam ser abertas, novos marcos mais modernos precisam ser fincados. Estes revolucionários , profetas de tempos melhores, visionários de novos costumes e de leis mais modernas e igualitárias, nadando contra a corrente, correm sempre o risco de serem engolidos pela enxurrada.
Perdemos, ontem, um destes idealistas utópicos. O cratense José de Brito Filho entrou comigo na Faculdade de Medicina em Recife em 1972. Espírito irrequieto, já era funcionário do Banco do Brasil e foi impossível conciliar as duas atividades. Já casado precisava manter a família e teve que optar pelo trabalho. Em plena atmosfera de chumbo da Ditadura Militar sofreu implacável perseguição. Líder estudantil, politizado, pôs-se tenazmente contrário ao regime ditatorial vigente, à censura, à prisão e morte de adversários políticos dos militares que amordaçaram o país a partir de 1964. Olhando bem adiante do vidro do seu aquário, Zé de Brito sonhava e lutava por um mundo mais respirável, mais justo e igualitário. Podia ter sido exterminado como tantos outros que também estrebucharam e não se ajoelharam aos pés dos coturnos. Sobreviveu mas sacrificou, certamente, um pouco do seu futuro profissional quando optou por seus ideais em detrimento da estrada asfaltada e larga que lhe ofereciam. O tempo lhe ofertou, em troca, a placidez dos mosteiros. Poeta inspirado, com fortes e inquebrantáveis vieses sociais, pareceu sempre feliz, alegre, irreverente e divertido. Conseguia discutir calmamente com adversários políticos, sem que estes se tornassem, imediatamente, seus inimigos. Endureceu os ideais e as juntas sem perder a ternura. Como vinho de boa safra, não avinagrou no tonel de carvalho. Mesmo quando o inverno da existência chegou com seus rigores, Zé mostrou uma resiliência impressionante. Degustou a vida, com prazer, até o último gole. Ontem o farol apagou, mas a estrada à frente, para os novos imigrantes dessa terra, continua iluminada pela sua luz.
Zé de Brito, nos últimos anos, deve ter se angustiado com o retorno dos mesmos fantasmas que o assombraram na juventude. O ódio, a fúria, o terror, a cólera, a malquerença voltaram a ser, novamente, os temperos de um tempo que já parecia ter sido sepultado. Ele partiu nas vésperas de uma nova aurora possível e sonhada. E ele bem sabia que essa nova alvorada nunca nasce de parto normal, depende de cada um de nós no uso do fórceps. Quando o sol brilhar novamente, quando as nuvens tenebrosas da tormenta se dissiparem, quando o sorriso voltar a ser possível e espontâneo é sempre bom lembrar da luta de Zé, que foi imensa e valorosa simplesmente porque buscava uma felicidade que saltava para muito além dos muros do seu quintal.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
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