Como acontece nos compêndios de Medicina, as notícias do dia a dia, muitas vezes, trazem sintomas claros de que alguma doença grave vem acometendo a sociedade em que vivemos. Na última semana, os jornais trouxeram uma manchete típica da semiologia social brasileira. No bairro São Cosme, em Belo Horizonte, D. Célia Arquimino Barros, uma senhora de quarenta e seis anos, mora pobremente com seis filhos, entre eles Miguel, um garotinho de 11 anos. Como tantos e tantos brasileiros, D. Célia vive de “bicos”, dependendo de um mísero Auxílio Emergencial e da ajuda eventual do pai dos meninos, de quem está separada. Há quase um mês, não podia fazer compras e a família sobrevivia comendo farinha e fubá. O menino Miguel, magricela, não suportou a situação, tangido pela fome e pelas lágrimas da mãe desesperada, pegou o telefone e ligou para a Emergência da Polícia, no número 190. Quando a moça atendeu, do outro lado, perguntando qual era o motivo emergencial da ligação, ele não teve meias palavras: — Eu, meus irmãos e minha mãe estamos passando fome! A policial imaginou que, pela tenra idade do denunciador, podia se tratar de uma caso de mal tratos aos infantes e mandou o rabecão da polícia investigar o caso. Quando lá chegaram, emocionados, os policiais constataram um crime hediondo: Miguel, seus irmãos e a mãe em estado total de inanição, atingidos por uma arma mortal e que já se pensou um dia se tivesse descarregado: a fome.
Há algo mais simbólico do Brasil dos nossos dias? Aquele de desemprego proibitivo, de inflação galopante, de pandemia e, principalmente, da total incúria do Estado na área social? Os policiais pareceram surpresos e com olhos lacrimejantes, simplesmente, porque foram testemunhas ocular da tragédia que está alastrada país afora, mas como dizia Chico Buarque: “A dor da gente não sai no jornal”. Mais de trinta milhões fazem parte do Bloco Famintos à Beira da Cova, junto com Miguel e sua família. 160 mil moram nas praças, nas pilastras, nos viadutos, nas marquises. Metade da população que almoça no Brasil não tem a certeza de que jantará. Enquanto isso os jornais noticiam, todo dia, que somos campeões mundiais na produção agrícola para exportação. Alimentamos 800 milhões de pessoas mundo afora, mas somos totalmente incapazes de alimentar nosso povo. Meia dúzia de agro empresários enchem as burras de dinheiro, olhando sorridentes crianças morrendo famintas a seus pés. Ano passado batemos recorde na produção de proteína animal (quase 15 milhões de toneladas de frango e 5 milhões de toneladas de suínos), mas para alimentar países ricos, aqui pobre só come carne quando morde a língua.
A atitude de Miguel é muito simbólica. Ligou para o 190! Ele resolveu denunciar um crime, intuitivamente percebeu que o que estava acontecendo com sua família era um caso de polícia. Sentiu que alguém estava tentando assassiná-los, só não dava para entender bem os autores responsáveis pelo homicídio detalhadamente programado e calculado. A notícia veiculada, rapidamente, tocou o coração de muitas pessoas (ainda existem solidários por esse mundo). De repente, muitas doações chegaram e, ao menos, aliviarão o sofrimento de Miguel e seus irmãos por alguns dias. São remédios e curativos necessários mas paliativos para um mal com raízes muito profundas, um câncer que se alastra pela alma do Brasil e que, quando pensamos estar curado, novamente se dissemina. O Bloco de Miguel continua na avenida. Só parará o desfile quando um dia se entender que o Brasil não precisa se dividir apenas em duas grandes escolas de samba: a dos que moram no SPA e a dos que residem debaixo do viaduto.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
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