O Brasil ficou mais pobre durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), e não apenas por causa da Covid ou da Guerra da Ucrânia. Quando assumiu, em um cenário de economia ainda fragilizada pela recessão dos anos Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB), o presidente fez escolhas.
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Reduziu investimentos públicos, avançou pouco na agenda de reformas e travou o Bolsa Família, deixando a fila do programa crescer. Com a crise social se agravando a três meses da eleição, presidente e aliados encampam uma PEC para distribuir R$ 41,2 bilhões em auxílios. Para tirar da frente a Lei Eleitoral, que só permite algo assim em ambiente de exceção, o pacote inclui que Bolsonaro assine um decreto para colocar o Brasil em um estado de emergência que não existe.
O PIB (Produto Interno Bruto) per capita, indicador que mostra a produção da riqueza dividida pelo número de habitantes, fechou o ano passado em US$ 7.500 (R$ 41 mil). São cerca de US$ 5.726 (R$ 31 mil) menos que o pico, registrado em 2011. O valor atual equivale ao patamar de 2007. Em 2018, último ano do governo Temer, o indicador estava em US$ 9.151,40 (R$ 49 mil).
Dados relativos à renda média do brasileiro também mostram esse empobrecimento. O rendimento médio caiu de R$ 2.823 no início de 2019 para R$ 2.613 no trimestre de março a maio deste ano, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Mesmo antes da pandemia, esse valor já vinha caindo: no trimestre de dezembro de 2019 a fevereiro de 2020, o rendimento médio do brasileiro estava em R$ 2.816.
Em 2019, o programa Bolsa Família sofreu a maior queda da história, recuando de 14 milhões para 13 milhões de famílias. A fila de espera superou 1,5 milhão.
“Houve negligência em relação à situação social do país ainda antes da Covid”, afirma economista Débora Freire, professora do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
“Crises econômicas acontecem, trazem impactos negativos, mas faz muita diferença a forma como se lidam com elas. O governo agora usa esses eventos como desculpa, mas a verdade é que era seu dever fazer políticas públicas mais eficientes”, afirma ela.
“Eu atribuo os problemas de hoje ao modelo de política econômica, que não prevê estímulos para a recuperação e deixou de lado a áreas social. Antes da Covid, o Bolsa Família tinha filas enormes. Famílias que empobreceram na crise, já elegíveis para o programa, não estavam sendo atendidas. Isso não poderia ter acontecido, porque uma vez que uma família cai na extrema pobreza ela pode levar gerações para se recuperar.”
O economista Fernando de Holanda Barbosa Filho, pesquisador do FGV-Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), acredita que a gênese do empobrecimento está na incapacidade dos governos de ajustar as contas públicas, o que elevaria a confiança das empresas privadas para elevarem os investimentos, a geração de empregos e o aumento da renda.
Ou seja, fazer a roda do crescimento ganhar impulso virtuoso.
“A minha visão é que o processo de empobrecimento gradual que vivemos decorre de um problema fiscal ainda não solucionado, e caminhamos para mais uma década perdida ainda sem um desfecho para esse problema”, afirma ele.
“Entre 2015 e 2016, a gente teve uma crise nas contas públicas, provocada pelo aumento de gastos do governo Dilma Rousseff (PT), que buscava a reeleição, ali saímos do superávit para déficit primário.”
No segundo mandato da petista, o país enfrentou oficialmente uma recessão, segundo o Codace (Comitê de Datação de Ciclos Econômicos).
Os desembolsos da Assistência Social, sem contar o BPC (Benefício de Prestação Continuada), mas incluindo Bolsa Família e o sucessor Auxílio Brasil, estagnaram na casa de R$ 43 bilhões de 2015 até 2019, às vésperas da pandemia.
Deram um salto apenas depois da liberação do Auxílio Emergencial, que era para ser de R$ 200, mas chegou a R$ 600 após uma queda de braço entre governo e Congresso, que insistiu no aumento do valor.
Esses dados constam de um levantamento realizado pelos pesquisadores Carlos Bastos e Julia Braga do Grupo de Economia do Setor Público da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A dupla está finalizando um estudo sobre os efeitos do teto de gastos, desde a sua criação, sobre a aplicação do Orçamento. A conclusão é que ele funciona.
“O teto foi muito bem-sucedido em segurar os aumentos, mas fica claro também que as despesas com menos apoio político ou interesse do comando da vez são mais sacrificadas”, afirma Bastos. “Como a gente previu, os gastos sociais foram espremidos.”
Os recursos destinados a iniciativas que servem de apoio à ampliação do bem-estar social, em áreas como trabalho, saneamento, habitação, lazer e cultura, despencaram. Caíram de R$ 111,6 bilhões em 2015, um ano antes da criação do teto, para R$ 73,4 bilhões no ano passado, queda de 34% em valores ajustados pela inflação.
A PEC das eleições, por sua vez, vai na contramão da solução, diz Barbosa, da FGV. “Não há dúvida que está focada em aspectos eleitorais, porque não há programa de combate a pobreza estrutural em fazer transferências e dando incentivos por três meses.”
A economista Sandra Brandão, que mantém levantamentos sobre gastos sociais desde o tempo em que atuava como chefe de gabinete de informações da ex-presidente Dilma Rousseff, destaca a forte retração dos recursos em uma outra área, a rede de apoio aos benefícios assistenciais.
Caiu praticamente à metade na gestão Bolsonaro, e recebeu R$ 2 bilhões no ano passado.
A rede Suas (Sistema Nacional de Informação do Sistema Único de Assistência Social), que cuidava das políticas de apoio aos beneficiários dos programas, como o Cadastro Único no antigo Bolsa Família, foi praticamente desmontada e transferida para um sistema operacional virtual da Caixa.
“É claro que o governo precisa ser digital, mas muita gente não tem acesso à internet ou dificuldade para lidar com ela”, diz Brandão. “Não tenho dúvidas de que as filas com pessoas tentando se cadastrar para receber o benefício, agora chamado Auxílio Brasil, tem relação com o desmonte do cadastro, piorando a situação da população mais vulnerável.”
Uma dessas pessoas é Beatriz Cristina dos Santos Silva, 22, é mãe solo de Maitê, de cinco meses. Nunca teve emprego com carteira assinada, mas conta que chegou a ganhar em média R$ 3.600 como gerente comercial.
Desde maio, três vezes por semana, ela enfrenta uma viagem de duas horas de Mairiporã (SP), onde mora, carregando a cesta de doces e a filha no colo, para vender brigadeiros e brownies próximo a um shopping na zona leste da capital paulista. Esse é seu único sustento.
Tentou ser cuidadora em um hospital, mas a filha ficou doente sob os cuidados de outra pessoa. “Percebi que estava muito cedo para deixá-la, então comecei a ver vídeos na internet e aprendi a fazer os doces com uma confeiteira”, diz.
Ela conquistou clientes, mas conta que as vendas caíram nas últimas quatro semanas. “Foram péssimas. Saio de casa com 10 a 12 caixinhas. Nem sempre vendo tudo, mas, normalmente, o lucro líquido em um bom mês é de R$ 1.400, e de R$ 1.000 em um ruim.”
Sua preocupação agora é conseguir um novo lugar para morar. “O aluguel está em dia, mas de repente fui informada de que teria que desocupar a casa. Me senti muito mal”, afirma.
Ela conta que o único benefício social que recebeu até hoje foram três parcelas de R$ 600 do Auxílio Emergencial. “Tentei atualizar o CadÚnico para pegar o Auxílio Brasil, mas estão pedindo um documento que não tenho.” Como não é contribuinte do INSS, também não recebeu o auxílio-maternidade.
Procurado para comentar sobre a dificuldade de Silva para atualizar o CadÚnico, o Ministério da Cidadania não se manifestou até a conclusão desta matéria.
O empobrecimento do brasileiro nos últimos anos aparece em diferentes dados, mas um indicador de consumo traz uma nova faceta dessa situação, a piora no sentimento de perda no poder de compra em escala internacional.
Levantamento realizada em 100 países pela Nielsen Media Research, uma empresa global de pesquisa de mercado consumidor, mostra que 64% dos brasileiros declaram ter passado a viver restrições orçamentárias após a pandemia. O número está bem acima da amostra geral, em que 46% disseram ter passado a sofrer limitações financeiras.
“Há uma combinação de dois fatores que podem explicar isso”, diz o espanhol Roberto Butragueno, diretor de varejo de Nielsen. “O Brasil foi um dos países que mais sofreu os efeitos da pandemia, quando se olha o contágio e o número de mortos, e também onde os preços de produtos básicos mais aumentaram.”
A Nielsen tem acesso a pontos de venda, como supermercados e farmácias, em escala global, e cruzou os dados. A cesta básica de consumo subiu 30% no Brasil entre 2019 e 2021. “É uma variação bem mais alta do IPCA, o índice oficial de inflação, e não há nada assim na Europa ou nos Estados Unidos”, diz.
No México, por exemplo, variação ficou na casa de 20%, nos Estados Unidos, 10%.
A pesquisa também retrata como os brasileiros tentam contornar essa realidade mais dura alterando hábitos. No quesito carne, por exemplo, há aumenta na busca por cortes congelados, que custam 25% menos em média que a versão in natura. Um dos produtos mais procurados na proteína bovina passou a ser o fígado, cujo quilo custa 50% menos em relação ao preço médio da categoria.
Há um efeito desânimo. Um terço diz que não tem vontade de sair para gastar. Quase metade, 46%, reduziu as refeições na rua, e 21% concentraram as compras em alimentos.
Eduardo Yamashita, diretor de Operações da Gouvêa Ecosystem, outra consultoria especializada em consumo e varejo, não visualiza mudança radical nesse cenário no segundo semestre. A razão é simples, falta dinheiro persiste, mesmo com a melhora no mercado de trabalho.
No trimestre até maio deste ano, a taxa de desemprego recuou para 9,8%, o menor nível para o intervalo desde 2015, mas a renda cai 7,2% no ano.
“Durante o auge da Covid, tivemos uma forte injeção de recursos públicos na economia, com a impressão de dinheiro em muitos países, o que levou a um expressivo aumento da massa salarial —ou seja, cresceu a quantidade de dinheiro disponível durante boa parte de 2020, e um pouco menos em 2021”,afirma.
“Quando o auxílio emergencial foi cortado no Brasil, a quantidade de dinheiro estava voltando ao pré-pandemia, mas aí veio a inflação.”
Configurou-se em 2022, define Yamashita, um clássico cenário de crise, com chances de arrefecimento em 2023, se a inflação ceder. E o pacote de benefícios aprovados no Congresso com apoio do governo não altera o seu cenário.
“Os auxílios que estão vindo são tímidos em comparação aos oferecidos no ápice da pandemia, a quantidade de pessoas que vai receber é menor, porque há restrições, o volume de dinheiro é inferior, e a inflação é bem maior”, diz Yamashita. “Obviamente vai se positivo e ajudar, mas não vamos ter o efeito que vimos antes, como alta nas vendas de eletroeletrônicos, boom de reformas e aumento até no consumo de proteínas.”
A associação de queda da renda, alta de inflação e, consequentemente dos juros, para segurar os preços, vai freando a economia e ampliando o efeito empobrecimento. Veja o caso do empresário Pedro Bressane. Ele fechou uma de suas pizzarias em abril deste ano depois de tentar mantê-la com o lucro das outras duas unidades.
Segundo ele, a demanda por pizza explodiu em 2020, mas os clientes sumiram no final do ano passado. Para Bressane, a queda na renda das famílias e do aumento nos preços dos alimentos foram decisivos.
“Estava em uma região boa de Osasco, classe média alta. Contratei influencers, investi R$ 4.000 em anúncios no Instagram, mas as vendas pararam, e os insumos só subiram”, diz Bressane.
“Eu pagava cerca de R$ 35 na caixa de tomate. Quando fechei, estava R$ 200 a caixa”, afirma. Na tentativa de manter a loja, o empresário fez ajustes em gastos pessoais e vendeu um carro. Já o hábito diário de jantar fora com a esposa se tornou quase mensal.
Ele contratou quatro corretores de imóveis para passar o ponto, mas, em cinco meses, não apareceu nenhum interessado. “Para não entrar em dívida, fechei.”
Fonte: Folhapress