Aos desavisados que chegassem em Matozinho, ficava sempre complicado entender aquela infuca dos moradores dali com os de Bertioga, uma vila que cresceu, praticamente, como um puxado da vila vizinha. Dividiam história e geografia. Que diabos teria acontecido para, com o passar dos anos, chegarem a disputas acirradas, uma e outra se declarando mais importante e desenvolvida, não poucas vezes redundando em arranca-rabos e risca-facas? Só com uma imersão maior nos costumes e fofocas locais descobria-se alguns sintomas que poderiam ter levado ao estranhamento.
Como simples distrito de Matozinho, Bertioga ganhou sebo nas canelas depois do desenterramento da imagem de N. S. dos Desafogados de Bertioga, do fundo das águas do Rio Paranaporã, e os milagres que, a partir dali, começaram a pulular por ali. De repente, Bertioga inchou como milho de mugunzá. Em poucos anos, já era bem mais populosa que a vila mãe da vizinhança. Um outro fato que terminou trazendo animosidade , acredita-se, teria sido a escolha de Bertioga para sede da Estação de Trem que um dia chegou naquelas brenhas. Matozinho, mais antiga e tradicional, tinha como justa e certa a prioridade como sede da Rede Ferroviária do Vale da Jurumenha – REFEVAJU. Motivos políticos, principalmente relacionados ao poder de votos do maior cabo eleitoral da região , N. S. dos Desafogados, redundaram naquilo que terminou sendo considerado mais um milagre da santa. Os matozenses não engoliam ter que se deslocar até aquele cuvioco chamado de Bertioga para pegar um trem que os levasse à capital. Os bertiogenses referiam-se aos matozenses como os “Calangos” e o povo de Matozinho chamavam os de Bertioga de os “Caititus”. E , claro, as ingrisias que aconteciam numa ou outra cidade, envolvendo os Calangos e Caititus eram sempre resolvidos com as leis estatutárias de cada um dos municípios: mais leves para os nossos e sempre mais severas para os deles.
Aí pelos anos 50, teve uma grande epidemia de Gripe Asiática na região. Os matozenses e bertioguenses caíram doentes e aconteceu uma das maiores mortalidades da região em todos os tempos. Mais de mil viventes sucumbiram, criando uma fila de espera danada, principalmente na porta do inferno e na do purgatório. O prefeito de Bertioga, entrevistado por um jornal da capital, engrossou a voz e cagou goma:
— Foi uma peste danega, meu senhor ! Mas veja você como são as coisas ! Em Matozinho, que vive de pabulagem, foram dessa para melhor uns 200 Calangos. E ainda vivem por aí contando vantagem e estufando os peitos parecendo sapa prenhe no brejo. Pois aqui, meu amigo, bateram as botas mais de seiscentos caboclos! Neguim foi enterrado até em buraco de tatu ! E eles ainda engrossam a voz e chamam aquilo de “nossa cidade”.
Giba, filho do artesão Chico do Pau Véi, morava em Bertioga e, adolescente, resolveu ir pra um forró em Matozinho. Como sempre, levou junto sua patota, condição sine qua non como item de segurança no check-list local. Frequentemente a coisa esquentava e, sem amparo da infantaria, era difícil enfrentar os adversários. Giba , bem apessoado, caiu no terreiro como jacaré em piracema. Dançou com as meninas mais jeitosas, sempre sob o olhar atravessado dos Caititus que se perguntavam, entre dentes: Que diabos esse cafinfim veio fazer no nosso terreiro? Lá pras tantas, aceirou Matilde, a mais paquerada mocinha de Matozinho. A turma babava de inveja, até porque, Giba puxou Matilde pro currupio e ela se deixou levar de bom grado. Giba , então, cometeu o deslize que todos esperavam: chutou um sapo que, em tempo de inverno, invadiu o salão de língua em riste atrás de besouro e se meteu em meio aos pares dançantes. Imediatamente, Severo, soldado do destacamento de Matozinho, lhe deu voz de prisão. Arrastaram o pobre do Giba para delegacia. Lá Francalino Cassundé, também conhecido como “o Craque” ( diziam que era porque ele comia muita bola), o recebeu com um rigor geralmente empregado para grandes meliantes. Giba, revoltado, explicou que aquilo era uma injustiça. Não tinha feito nada, não cometera nenhum crime e não entendia porque estava ali. Aquilo era uma perseguição barata !
— Perseguição o que, seu descarado ! Dobre essa língua! Você é acusado de agredir, sem justa causa, uma pessoa !
— Uma pessoa, seu delegado ? Uma pessoa ? Eu chutei um sapo ! Isso é crime?
— Sim, seu Giba ! Mas esse sapo mora onde ? Aqui ou em Bertioga? Você desacatou um cidadão de Matozinho ! Por que você não vai dá cangapé nos cururu daquele cu do mundo onde vocês moram?
No famoso São João de Bertioga, o atrito entre os Calangos e Caititus eram sempre mais frequentes. Naquele ano, parecia coisa combinada: as moças namoradeiras de Bertioga começaram a saltar cavalheiros. Negavam-se a dançar com os matozenses, sempre sobre a justificativa de que estavam cansadas. Juca Crispim , já meio melado como brocha de pintor, cismou com aquela implicância. Tinha vindo de Matozinho para festa e estava passando batido. Acercou-se de uma mocinha a requisitou para dança e, quando ela veio com a desculpa repetida de que não podia porque estava cansada, ele se sentou na cadeira ao lado e disse: Não tem problema, eu espero, quando você descansar a gente dança. Depois de uma hora de espera, ela não descansara ainda, mas, estranhamente, acolheu um pedido de um rapazinho de Bertioga que a convidara para o salão. O tempo fechou: abriu-se o maior fuzuê envolvendo as já treinadas patotas de Matozinho e Bertioga. Juca terminou preso com sua trupe e levados à delegacia. Estranhamente, nenhum dos seus adversários foi arrolado no processo. Atrás das grades, um Juca furioso reclamava da injustiça cometida:
— Preso ? Só nós ? E nós brigamos foi com nós mesmos ? Cadê os Caititus? Tudo solto ? É um despautério mesmo ! Ser preso e logo numa cidade de merda como essa Bertioga !
O soldado Furdelino Morais, também conhecido como Capote, baixinho , invocado e afobado como galinha de pinto, partiu pra cima da galera de Matozinho e não perdoou:
— Fiquem caladinhos aí que até de bico fechado vocês ainda estão errados! Deem graças a Deus, é melhor está preso em Bertioga do que solto naquela porcaria de Matozinho!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
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