“O herói é o homem que faz o que pode.”
Romain Rolland
No último dia 17 de maio, a nossa família celebrou o centenário do Dr. Raimundo Vieira, médico que, a partir de 1963, se radicou em Iguatu, aqui no Ceará e ali fez uma profícua carreira, atendendo incontáveis gerações. Formado em Salvador, em 1952, Dr. Raimundo teve uma breve passagem por Minas Gerais, onde clinicou na cidade de Rio Pardo, onde, inclusive, foi prefeito. Casado com uma colega de turma, a Dra. Antonia Araruna, também caririense, o casal terminou por voltar ao Ceará, onde, em Iguatu, fez toda sua vida profissional. Toinha, gineco-obstetra como o marido, era de uma fineza de trato inigualável, amada e querida por toda a população, quis o destino chamá-la prematuramente, legando à posteridade dois filhos: Ítalo e Márcio. Ante o baque inesperado, Dr. Raimundo precisou refazer os estilhaços da vida feliz que lhe restara. Anos depois, encontrou Francisquinha, uma professora dedicada que lhe trouxe o equilíbrio necessário para refazer a estrada que lhe aparecia tão nebulosa e sem perspectivas. Deste segundo casamento nasceu Márcia, uma menininha alegre e sapeca que se tornaria uma das mais importantes engenheiras do Ceará.
Dr. Raimundo teve toda uma vida dedicada ao trabalho. Até próximo à sua partida, aos 96 anos, ainda clinicava e exercia funções burocráticas nas Secretarias de Saúde. Foi o mais longevo dos filhos do casal Vicente Vieira & Senhorinha, nascido ali na Lagoa dos Órfãos, um pequeno sítio próximo a Várzea Alegre. Mantinha uma vida quase monástica e sacerdotal, dividida entre as atividades médicas e a agropecuária, um amor que herdara dos seus descendentes espalhados pelas cercanias do Riacho do Machado. De origem humilde, filho de pequenos lavradores, teve que ralhar muito para conseguir formar-se em Medicina na longínqua Bahia. A família toda deve, certamente, à visão de futuro de seu Vicente Vieira, semianalfabeto, em fazer com que os rebentos arrebentassem as amarras estreitas da lavoura e partissem para o estudo, para a Ciência, desbravando um mundo que até então não lhes era acessível. José, o mais velho, precisou ficar com o pai para tocar os trabalhos e, depois, fez-se comerciante no ramo das livrarias; Vieirinha se tornou professor renomado no Cariri; Antonio fez-se padre e, depois, escritor e deputado federal; Eunice, Laís e Balbina professoras.
Dr. Raimundo nunca abandonou suas origens. Isto, por si só, dá um testemunho de sua grandeza. Amparou, profissionalmente, toda sua imensa família, cuidando da saúde de todos e acompanhando as muitas e muitas gerações. Seus imóveis em Fortaleza tornaram-se repúblicas de amigos e parentes que precisavam ir à capital a fim de completar seus estudos. Adquiriu, pouco a pouco, dos herdeiros, as terras da Lagoa dos Órfãos, que guardava quase como um relicário. Aos poucos, os herdeiros foram novamente se achegando e ele acolheu, novamente os que necessitavam, sem quaisquer resquícios de donatário ou proprietário. Para ele as afinidades de sangue eram bem mais importantes que as cláusulas de inventários e de partições.
Quis esse texto simples, como o nosso hoje centenário tio Raimundo. Um texto, como ele: mais de substantivos que de adjetivos. O tio faz parte daqueles heróis anônimos que não figuram nas estátuas de bronze, nos louros e nos poemas épicos. Pai exemplar e amoroso; profissional dedicado, um missionário; médico com o ingrediente básico da Medicina: a capacidade de ver a angústia e sofrimento do outro que precisam ser lenidos. Toda uma vida dedicada ao bem comum. Seus feitos, como os dos verdadeiros heróis, não estarão descritos nos livros e nas epopeias sujeitos aos carunchos do tempo, Dr. Raimundo os escreveu na alma e no coração das pessoas. Sua lembrança hoje, cem anos depois, nos cai no espírito ainda como um unguento, como um bálsamo!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri