Sóstenes acabara de assistir na TV à suspensão do Carnaval em todo o Brasil, pelo segundo ano consecutivo, por conta da pandemia. Folião de carteirinha, sempre tivera a festa de Momo como um período de depuração, a possibilidade de jogar para o porão os infortúnios e chateações do dia a dia. Naqueles quatro dias, deixava de lado o terno e a gravata colocava a fantasia da vez e tinha a possibilidade de viver múltiplos personagens: o mendigo, o padre, o rei, o maestro, o palhaço, o pirata, o motorista de ônibus, o juiz togado. Sóstenes, com um nome grego ganho em pia batismal, sempre tinha a dúvida , depois, se se fantasiava era no Carnaval ou nos outros 361 dias do ano. Quem era o personagem , quem era o real? O barnabé que se enfatiotava para trabalhar entre carimbos e folhas de papel almaço ou o marajá que teria o curto reinado de quatro dias?
O certo é que a notícia embaçou-lhe a alma. E ele ficou a pensar no mundão de tragédia que tomou conta do Brasil, nos últimos quatro anos: a lama de Brumadinho, o incêndio do Museu Nacional, a Covid que paralisa a Terra há dois anos, as labaredas da Cinemateca, o óleo invadindo as praias do Nordeste, os incêndios no Pantanal, o desmatamento da Amazônia, as inundações de Minas e da Bahia, a seca no Rio Grande do Sul, a crise hídrica, a inflação, os deslizamentos de Petrópolis… E até uma guerra entre Rússia e Ucrânia com riscos de as bombas terminarem por explodir para lá dos seus quintais. E, de repente, lhe veio a pergunta que pareceu inevitável:
— Quem diabos foi que abriu a Caixa de Pandora?
A sensação que lhe ficou foi que para compensar tantas calamidades juntas seria necessário um Carnaval de ao menos seis meses. Na balança da vida tinha toneladas de dissabores em um dos pratos e o outro continha apenas gramas infinitesimais de prazer e de felicidade. As cinzas que só viriam na quarta feira ingrata resolveram tomar conta de todos os instantes. Neste baile pálido e secreto que começaria hoje, Sóstenes percebeu que havia , mesmo assim, gente demais fantasiada de Satanás, de Drácula, de vampiro, de morte, de Freddy Krueger. Haja céu para tanto inferno, pensou entre dentes.
No sábado de Zé Pereira, Sóstenes resolveu sair no Bloco “Tá escuro? Pois feche o furo!”. Meteu-se numa enorme caixa de papelão de onde saiam apenas sua cabeça, seus braços e suas pernas. Quando lhe perguntavam que fantasia era aquela, ele dizia que era uma urna eleitoral ou a caixinha de Pandora, o que afinal dava na mesma coisa. Eram sempre os mesmos foliões que enchiam uma ou abriam a outra. Escangalhada, dali escapavam todos os males deste mundo: mentira, ódio, guerra, pestes. Às vezes, dentro, ficava apenas recolhida em um dos cantos, uma mocinha recatada e sonhadora chamada esperança.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri