Imaginem uma mulher linda, elegante e maravilhosa mas que carrega no ventre um tumor maligno terrível e inoperável ! Várias intervenções médicas foram realizadas na tentativa de trata-la, sem sucesso, única e exclusivamente porque não conseguiram erradicar a raiz primal da doença. Ou, quem sabe, algumas dessas terapias tinham o sentido explícito de incentivar o crescimento e progressão da chaga maligna. Esta mulher é o Rio de Janeiro, uma das mais belas cidades do universo em belezas naturais, antiga capital do Brasil, aquela que foi um dos paraísos terrestres até meio século atrás. Hoje a população , em polvorosa, se vê numa sinuca de bico, imprensada entre a violência policial, a Corrupção crônica e vil da política, a máfia das Milícias e os tentáculos do Tráfico de drogas. No Rio, o estado foi substituído pelo Crime Organizado. É ele que tem na mão a justiça, quem determina a vida ou a morte, quem se responsabiliza pelos principais serviços públicos, pela segurança e insegurança.
A partir do início desse século, as milícias, nascentes na comunidade de Rio das Pedras, com forte população de nordestinos, tomaram conta das principais favelas do Rio, a princípio cobrando taxas de proteção à população e exterminando descaradamente quem se opusesse a pagar. Aos poucos, ampliaram seu raio de ação, como uma holding, responsabilizando-se por serviços essenciais como: venda de água, gás e cestas de alimentos, transporte clandestino, TV a cabo e internet piratas, roubo e refino de petróleo cru para fabricação de combustível, coleta de lixo e também na apropriação de terras públicas e privadas abandonadas ou sem uso, que são loteadas e vendidas ilegalmente. Avaliação recente demonstrou que esses imóveis já somam mais de 11.000 na Cidade (que um dia foi) Maravilhosa. As milícias movimentam , estima-se, cerca de trezentos milhões de reais todo ano. Todo esse poderio cresceu com o apoio político inconteste, inclusive com forte amparo do atual governo federal que a considerava sempre como um “mal menor”. Milicianos foram condecorados com a Medalha Tiradentes, uma das maiores honrarias do estado, por um dos filhos do atual presidente da República que também teve em um dos seus assessores , Fabrício Queiroz, um dos elos reconhecidos com milicianos. Essas milícias foram responsáveis pela morte brutal da vereadora e ativista social Marielle Franco , em março de 2018, crime até hoje não elucidado completamente.
O Narcotráfico que se estabeleceu nas favelas do Rio a partir dos anos 1970, movimenta hoje em torno de 3,5 bilhões de reais em todo estado, fragmentando-se em vários comandos, com tentáculos na polícia e na estrutura política do estado.
No Rio, quase 15.000 pessoas vivem na rua, o triplo do que acontecia cinco anos atrás, dessas mais de quinhentas são crianças. Foram na sua maioria tangidos pelo desemprego, pelo abuso de drogas, por rompimentos com a família e transtornos mentais. Ali, não tão diferentemente do resto do país, a cada quatro horas, uma menina abaixo de treze anos é estuprada. A saúde pública na cidade encontra-se em colapso total: macas servindo de leitos pelos corredores, atrasos nos repasses de verbas, funcionários com salários em atraso, e, pior, a possibilidade de um corte no orçamento do SUS de 12% para esse ano. Recentemente a Defensoria Pública orientou a solicitação de Estado de Emergência na Saúde do Rio. Na Educação pública a catástrofe não tem também paradeiro: um déficit de pelo menos 11 mil vagas nas escolas, em alguns locais a fila de espera é de mais de 500 candidatos. A falta de professores é uma verdadeira calamidade: quase 150 escolas estão sem aulas e nos últimos doze meses mais de 2000 professores abandonaram a profissão. Há cinco anos os professores da rede estadual não recebem qualquer reajuste nos seus salários. Embora a taxa de homicídios aparentemente tenha baixado , a morte produzida por ações policiais aumentaram: no ano passado atingiram mais de 1500 vítimas. No Brasil , 31 crianças ou adolescentes morrem diariamente de forma violenta, estamos entre os cinco países no mundo mais mortais para a infância e adolescência. O atual Governador do Rio, Witzel, comemora a eliminação sumária de sequestradores como se tratasse de um gol , num Fla-Flu de final de campeonato.
Diante de uma tragédia dessas proporções, esperava-se que o estado tomasse providências drásticas para solucionar este genocídio. Nos últimos tempos, no Rio, no entanto, foram presos acusados de corrupção: três governadores (Sérgio Cabral, Garotinho e Rosinha), dois presidentes da Assembléia Legislativa (Jorge Picianni e Paulo Mello), oito deputados estaduais, um secretário estadual, vários conselheiros do TCE, dois presidentes do DETRAN e o Procurador Geral de Justiça. A política do Rio poderia ter como centro administrativo o presídio de Bangu I.
Semana passada, na Bienal do Livro , o atual prefeito do Rio de Janeiro, que carrega consigo mais de 60% de reprovação em pesquisas, tomou uma atitude típica do Século XIII. Mandou censurar e apreender, sob uma chuva de protestos, um livro, exposto na Bienal, pelo simples fato de apresentar um beijo entre dois adolescentes do mesmo sexo. Segundo ele , aquilo feria a moral e os bons costumes. Tempos sombrios voltam a se abater sobre o Brasil ! Um juiz de primeira instância impediu a medida governamental que qualquer menino de ponta de rua sabe ferir frontalmente a Constituição de 1988. Um desembargador , Cláudio Mello Tavares, -pasmem vocês! – cassou a liminar que terminou sendo, por fim, referendada pelo STF que precisou pôr obviedade no óbvio: Constituição foi feita para ser respeitada!
Para Crivella , um beijo é pornografia. Chacina de adolescentes, estupros, chacinas promovidas pela polícia, desassistência em hospitais, implosão da escola pública, corrupção desenfreada de governantes, tudo isso é normal. Não precisa ser combatido ! Está tudo na Bíblia, faz parte dos novos livros bíblicos agora publicados, nestes tempos tenebrosos em que os novos evangelistas fazem o milagre da multiplicação das moedas e dos dólares e esbravejam nos templos palavras de intolerância, de desamor, de armação de corpos e espíritos, tudo aquilo que um dia foi exorcizado por um pobre filho de um carpinteiro da Galileia.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
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