Quando Karina Rondini tinha 2 anos, sua mãe, Fátima, ouviu de médicos que as manchinhas no corpo da bebê, chamadas de “café com leite”, eram causadas por uma doença genética rara, a NF1 (neurofibromatose tipo 1). Em agosto você leu a história de Karina no Revista Cariri.
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Embora o diagnóstico tenha sido assustador desde o primeiro dia, os sinais mais evidentes da condição começaram quando Karina tinha 15 anos. Tumores, que se tornariam grandes com o tempo, começaram a crescer nos membros inferiores da adolescente, causando, além de dor e coceira, olhares e comentários preconceituosos de colegas de escola e até desconhecidos.
Quando conversamos em 2019, Karina, que na época estava com 29 anos, já tinha tumores que pesavam cerca de 40 kg. Na época, ela contou que, pela alta vascularização dos tumores (a presença de muitas veias, algumas com até 1 cm de largura), os procedimentos para retirada das massas tinham alto risco de hemorragia e eram limitados. Os médicos não se propunham a tirar mais do que alguns quilos por cirurgia. Mas isso mudou um pouco depois.
Surge um nome e a esperança
A expectativa para a melhora da qualidade de vida começou a mudar quando, após participar de um documentário britânico sobre sua doença, Karina notou a repetição de um nome específico nos comentários deixados pelos espectadores. “Estavam em inglês e, depois que traduzi, vi que recomendavam um médico que já tinha retirado grandes tumores”, relembra.
Tratava-se do norte-americano McKay McKinnon, cirurgião plástico há 37 anos e com vasta experiência na retirada de tumores causados pela neurofibromatose, com alguns pacientes até mais comprometidos do que Karina.
Em 2011, McKinnon chegou a deixar um paciente 90 kg mais leve após a remoção de tumores que cresciam em seu abdome. O procedimento foi feito no French Vietnam Hospital, em Saigon, no Vietnã.
Depois de muita pesquisa, a curitibana tornou sua missão trazer o especialista para realizar um feito semelhante em sua cidade natal. Com a ajuda de sua irmã, que vive no Canadá e fala inglês fluentemente, Karina entrou em contato com o americano. Após se inteirar do caso, analisar exames e conversar com a equipe médica do Hospital Marcelino Champagnat, onde a brasileira já havia realizado algumas cirurgias, McKinnon aceitou vir ao Brasil.
Começou, então, uma nova fase para Karina e sua família. Os custos hospitalares e de viagem do cirurgião girariam em torno de R$ 200 mil. A maior parte do valor foi arrecadada por meio de uma vaquinha feita pelo do site Razões para Acreditar, mas a família também fez esforços.
“Vendemos o carro, economizamos muito, tudo pensando nessa cirurgia. Sem o nosso automóvel, ficou difícil até para a Karina se deslocar. Inclusive, uma vez precisamos ir até São Paulo de ônibus com leito cama, por que os bancos comuns não eram grandes o suficiente para ela”, conta Fátima.
A viagem aconteceu com o objetivo de fazer uma ressonância pedida pelo médico em uma máquina maior do que a encontrada em Curitiba, mas, por conta dos tumores, o aparelho também não foi grande o bastante. “Quando voltamos, nos indicaram fazer o exame em um hospital veterinário, mas a máquina estava quebrada”, conta a mãe.
‘Inoperável’? Cirurgia foi bem-sucedida
A cirurgia estava prevista para 2020, mas com o atraso para conseguir o valor necessário, aconteceu na última terça-feira, 16 de novembro de 2021. (Aqui neste link você pode ver fotos dos tumores retirados na operação. ATENÇÃO: as imagens podem ser fortes para algumas pessoas)
A possibilidade de uma remoção tão extensa não era bem aceita por médicos brasileiros —mesmo se tratando de cirurgiões renomados e com muitos anos de experiência. Para McKinnon, há um certo pessimismo geral quando se trata de cirurgias de pacientes com neurofibromatose, mas a palavra “inoperável”, segundo ele, é somente um ponto de vista.
“Essa palavra deve estar entre aspas porque em alguns casos eu não a aceito. E o de Karina foi um deles. É um caso perfeitamente possível de ser operado”, diz o médico, explicando que isso não significa que a cirurgia é fácil.
“O tumor do neurofibroma provavelmente tem mais tecido vascular ao redor e dentro dele do que qualquer outro tipo de tumor. A cirurgia durou 11 horas”, conta.
No total, foram removidos 30,4 kg de tumores de Karina, o que representa cerca de 80% dos tumores que ela tinha no corpo. O restante ainda será removido em outra cirurgia, menor, prevista para ser realizada pelos médicos brasileiros do Hospital Marcelino Champagnat depois que Karina estiver bem recuperada desse procedimento.
Outra crença comumente difundida entre os médicos brasileiros é a de que, mesmo após uma grande retirada, os tumores voltariam a crescer. McKinnon mostrou, com outros pacientes, que isso nem sempre é verdade —e buscou fazer o mesmo com Karina.
“Ainda é cedo para dizer quais são os resultados, mas ela está se recuperando bem. A cirurgia radical de fato pode prevenir a recorrência de um tumor e estamos tentando buscar a base científica para essa hipótese, isso faz parte da minha carreira. Pense na natureza: se você aparar a flor no topo da planta, ela crescerá novamente, mas se você destruir as raízes da planta, isso não será possível. Essa pode ser uma analogia próxima ao que tento fazer com a neurofibromatose”, explica.
O que pode acontecer, pela doença ainda estar em curso —e não ter cura— é que os tumores surjam em outros lugares, mas no momento seu corpo não indica o aparecimento de novas lesões. A neurofibromatose surge em função de uma mutação genética, que pode estar presente em um dos pais ou em suas células germinativas (nesse caso, pai e mãe não apresentariam a doença), ou ainda ser uma mutação nova, um “erro genético”, como é o caso de Karina.
Também conhecido como doença de von Recklinghausen, o quadro geralmente afeta o sistema neurológico e a pele, mas pode ter manifestações distintas de acordo com o organismo e a mutação de cada paciente.
Considerada inédita no Brasil pela quantidade de tumor retirado, a operação de Karina serviu de aprendizado para a equipe brasileira que acompanhou o procedimento. “Com certeza não só eu, mas todos os outros cirurgiões e médicos residentes que participaram da cirurgia, estão muito entusiasmados com o que pudemos aprender”, avalia Alfredo Benjamim Duarte Da Silva, do Hospital Marcelino Champagnat.
Para realizar as incisões, explica Silva, foi usada uma pinça especial, capaz de coagular o sangue primeiro para depois cortar os vasos, diminuindo o risco de hemorragia. “São vasos grandes e, se fôssemos fazer a cirurgia de forma tradicional, sem essa pinça, seria necessário pegar cada vaso e suturá-lo, o que tornaria o trabalho impossível.”
Por ser uma paciente que ficará bastante tempo na cama, além de passar por uma cirurgia de muitas horas, antes do procedimento foi colocado um filtro na veia cava, cujo objetivo é diminuir a capacidade do sangue em coagular, diminuindo assim o risco da paciente desenvolver trombos (“placas”) que pudessem causar embolia pulmonar.
Um dos ensinamentos de McKinnon, aponta Silva, foi a técnica de começar a repor sangue logo que a paciente entrou no centro cirúrgico. “Foi utilizada quase duas vezes a quantidade de sangue que ela possui no corpo, e foi isso que a manteve estável até o final da cirurgia. A equipe de anestesia, responsável por essa reposição, foi fantástica.”
Os primeiros – e os próximos – passos
Karina ainda não pode se sentar —por conta do risco de rompimento dos pontos—, mas ela já foi capaz de dar os primeiros passos com as “pernas novas”.
Quando perguntada sobre o que gostaria de fazer após sair do hospital, ela logo disse que pretende usar roupas novas. “Agora vai ficar mais fácil encontrar peças como shorts e calças, que antes eu tinha que mandar fazer.”
Para os médicos, a cirurgia garantirá que Karina possa realizar muitas atividades que não eram possíveis antes —como caminhadas mais longas, retorno aos estudos e viagens.
Pela extensão da cirurgia, o caminho de recuperação ainda será longo, e a família continua a receber doações por meio de PIX (CPF). Mas o Natal deste ano, garante a mãe, com certeza já será diferente. “Temos muito o que comemorar.”
Fonte: VivaBem/UOL