O cabo Ambrósio Penalva transpôs toda sua carreira militar sem gastar muita pólvora e espoleta. Sentou praça na capital, logo no pós guerra. Rapazola deslumbrado, pensou em um dia ganhar os campos de batalha e exterminar os inimigos da pátria amada, imantando-se nos botões do fardão de Mascarenhas de Morais. Sonhou muitas vezes imortalizado numa estátua de bronze:
“Em memória ao Capitão Ambrósio Penalva, herói da pátria, bravo vencedor da Batalha de Pititoró (1968)!”
A fantasia ambrosiana, no entanto, bateu catolé. Depois das duas grandes guerras, o mundo no rescaldo, deixou de se meter em embirras e arranca-rabos desnecessários e mortais e a paz , encabeçada pela turma do deixa-disso e aquieta-arreda , botou novamente as fuças de fora. Para um cabra metido a valentão, com sangue pingando pelos cantos dos olhos, aquela calmaria não deixou de trazer uma certa capionguice ao nosso milico. O certo é que, na caserna, Ambrósio teve que se conformar batendo ponto, dando continência e ouvindo ordens do dia. Só nas paradas do 7 de Setembro desfilava em passo de ganso, de peito estufado como quem tivesse dado pesqueiro nuns três ou quatro alemães da Gestapo ou carreira em japa metido a Bruce Lee. Os tempos foram passando, entre um e outro toque de alvorada. Ambrósio casou com D. Calciterina, filha de um coronel do mesmo destacamento, mulher rígida, organizada: tomava conta da casa, como se se tratasse de um quartel sob sua jurisdição. Aos poucos, saltaram as três filhas do ventre de Calciterina e, com seu exército particular e tantas responsabilidades hierárquicas sobre os ombros, o cabo já não se preocupou mais em enfrentar valentões em outros campos de batalhas. Tenho um general e três almirantes dentro de casa! — costumava dizer. Podia ter progredido um pouco mais na carreira militar , quem sabe ostentando as divisas de um oficial superior como a sonhada patente de capitão, mas , meio tardo , de temperamento mais recatado, e pouco bajulatório, acabou empererecado no meio do caminho. Um dia, de fuzil enferrujado e mira gasta, viu-se reformado. Não subira muito na aguerrida profissão, mas , também, não precisara gastar o indicador no gatilho do fuzil , suar a farda cavando trincheiras , nem enfincar baioneta em fato de alemão.
Pendurada a cartucheira, resolveu voltar com a família para Matozinho. Aquela natural tendência da ave de arribação de voltar ao ninho. Pesou na decisão, também, o custo de vida mais em conta para seu solto de oficial subalterno e, depois, e talvez lá pudesse ostentar a maior patente existente na vila.Com tantos soldados rasos , um cabo ali seria uma espécie de marechal.
Aos poucos as meninas foram casando, tomando rumos próprios e ficaram apenas Calciterina e Ambrósio dividindo as lembranças e aguardando a chegada inexorável do apagador no quadro negro do tempo. Um belo dia, no entanto, Calciterina convocou as filhas para uma reunião extraordinária, sem a presença do cabo. Explicou-as, então, do alto da sua experiência de gestora doméstica, que havia alguma coisa errada acontecendo. Segundo ela, o soldo de aposentado de Ambrósio não era essas coisas, mas sempre fora suficiente para sobreviverem sem aperreio, ainda mais agora que só restavam marido e mulher no mesmo teto. De uns seis meses para cá, ela notara que a feira já não era suficiente para cobrir todo o mês e tinham que fazer compras adicionais em bodegas, com vales a serem descontados no mês posterior. Como uma fiscal atilada da Receita, ela vaticinou:
— Podem ir atrás ! Tem alguma coisa errada! Tem caroço nesse angu ! Tô ficando é velha, não é maluca não!
As meninas pensaram que aquilo devia ser alguma infuca da mãe, alguma ciumeira outonal. Mesmo assim combinaram para, no outro dia, seguirem Ambrósio na sua saída oficial pela manhã para a praça de Matozinho, onde se abastecia das últimas fofocas da vila e aproveitava para contar algumas vantagens, estabelecendo um necessário contraditório ao caga-gomismo dos outros aposentados. Esconderam-se nas proximidades e seguiram, de longe, um Ambrósio que fazia o mesmo percurso histórico há tantos e tantos anos. Tudo transcorria na mais perfeita normalidade, só que , uns dois quarteirões antes da pracinha, o cabo deu uma inesperada quebra de asa numa das ruas laterais. As filhas, como cães perdigueiros, seguiram o novo percurso que, para surpresa delas, terminava numa casa pouco ou bem afamada na Rua do Caneco Amassado, o baixo meretrício de Matozinho. As meninas aguardaram um pouco e, depois, passaram defronte da boate, quando puderam observar um Ambrósio loquaz, aboletado numa preguiçosa, em plena batalha, com uma jovem buliçosa sentada em cada um dos joelhos. Estupefatas, entenderam tudo e voltaram para casa com aquele humor de menino em fila de vacinação.
À noite, resolveram pegar Ambrósio em emboscada. Pediram a Calciterina para ficar no quarto e sitiaram o militar na sala de jantar, mal tinha acabado a ceia. Augusta, a mais calma e de voz mais pausada, fez-se a porta-voz.
— Papai, a gente tem uma coisa pra falar com o senhor! Mamãe reclamou que estava faltando dinheiro em casa e que a feira que o senhor vinha fazendo, ultimamente, acabava na metade do mês. Achamos estranho e seguimos o senhor hoje de manhã. Estamos decepcionadas! Como é que pode, meu Deus! Um homem da sua idade! Quem poderia imaginar! Arrodeado de catrevagens! Duas cutruvias no colo, num cabaré desqualificado! Um velho de quase oitenta anos ! Como é que pode? O senhor papai, já tá brocha, mamãe falou, papa de angu… que diabo anda fazendo com rapariga? Quem não pode com o pote, não pega na rodilha!
Ambrósio mostrou-se um pouco surpreso ao ser pego no contrapé, mas rápido refez a cara de espanto e encontrou razões militares típicas de “A Arte da Guerra” para explicar o acontecido:
— Isso é no que dá vocês ficarem bisbilhotando a vida dos outros por aí! Vão cuidar dos maridos de vocês! O que eu estava fazendo, suas doidas, era uma ação militar! Pelejei para subir de patente e nunca consegui, ali tomei lições e encontrei a resposta de tudo!
Sulamita, a filha mais exaltada, que até então se controlava, pulou de lá como um guaiamum acossado:
— Militar, militar? Que diabo tem a ver chatô com quartel, papai? Não se faça de leso , não!
Ambrósio, então explicou as altas estratégias bélicas que aprendera com as meninas de “O Sorriso da Madrugada”:
— Passei a vida toda pelejando, querendo chegar a major e não consegui. Pois as meninas, vocês precisam ver, elas pegam o cabo, mexem daqui, remexem dali e, num minutinho, fazem capitão!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri