Se a vida é feita de altos e baixos, de vales e depressões, os amigos não estranhavam quando Ariosto contava que a dele, especificamente, tinha sido um verdadeiro Rali. Nascera pobre, filho de uma mãe solteira, numa favela. Desde os primeiros dias, travou uma renhida batalha pela sobrevivência. Nem pôde frequentar os bancos de escola por muito tempo e se o fez, reconhece, fora por conta da merenda escolar. Ali, ao menos, livrava-se do risco de morrer por inanição. Como todo menino pobre de morro, teve que se virar, desde cedinho: como flanelinha nos sinais, pastorando carros estacionados na rua e enveredando pela única carreira militar oferecida aos desfavorecidos, a aeronáutica dos lascados: avião de drogas ilícitas nas horas vagas. Depois de cair algumas vezes nas garras da polícia, com estadas em centros de correção, os hotéis e pousadas disponíveis aos descamisados, desistiu dos caminhos mais fáceis e, por isso mesmo, mais perigosos. Aprendeu o ofício de pedreiro e conseguiu um empregozinho na construção civil. Ariosto agora podia contemplar a cidade dos arranha-céus e dos cutuca-infernos, do alto do seu andaime. Entendeu, rapidamente, que o elevador do andaime, salvo melhor juízo, seria a única ascensão que lhe seria permitida na vida. Fez um barracozinho no morro, juntou-se com uma lavadeira de roupas , sua vizinha, e resolveu degustar o prato conforme lhe era servido. Rápido compreendeu que não só ele, mas o Brasil, também, vivia de declives e ladeiras. Crise econômica, trabalhador na rua. Voltou, sem que imaginasse, ao primeiro degrau da escada. Para aguentar o tranco, precisava de um anestésico e mergulhou no aguardente que acabou seu casamento e quase o destrói também. Ariosto estava no bico do urubu, quando resolveu, mais uma vez, dar uma cambalhota na vida. Largou a cachaça, voltou a trabalhar com pequenos serviços de alvenaria até que, um dia, despretensiosamente, passou diante de uma lotérica e resolveu jogar .
Na quinta feira, já nem se lembrava da fezinha, a moça da lotérica o procurou, exausta e vexada como se fosse tirar a mãe da força. Ariosto ganhara o Sena sozinho: estava milionário! A partir dali, sua vida deu um cangapé. Mudou-se para um bairro chique, comprou carro importado e resolveu passar o resto dos dias na maciota. Nada de dar um prego mais numa barra de sabão! A palavra trabalho, para ele, passou a soar como palavrão. Amigos apareceram aos borbotões. Ariosto sempre se perguntava onde eles tinham se encantado quando ele ainda ralava na construção. Um dia, até lhe apareceu uma mocinha nova, bonita e produzida, para lhe fazer uma entrevista para as redes sociais, disse ser uma tal de digital influencer. Entrevista vai, entrevista vem, de repente, ela lhe contou que estava apaixonada por ele. Chamava-se Thássia Navinsky. Ariosto ainda tentou escapar das garras dela, mas lembrou os tempos da seca , onde quase se acabou como a colher de pedreiro que usava nos serviços. Thássia ganhou por Yppon: era gostosa e bonita demais para se jogar pela janela.
Ariosto teve seus anos gloriosos, mas donde se tira e não se bota, um dia seca. A manutenção de Thássia era muito cara, o preço pela amizade de tantos amigos, também, onerava muito, um golpe financeiro perpetrado pelo contador. Um belo dia, Ariosto constatou que voltara, novamente, à estaca zero. Os amigos desapareceram, Thássia desapaixonou-se na mesma velocidade com que se tinha enrabichado e, na volta, como o mesmo selvagem furacão que tinha chegado, levou sua casa, seu carro, metade dos poucos bens que lhe tinham restado. Como desgraça pouca é meio de vida, antes que Ariosto tentasse começar, novamente, a subida da Montanha Russa, caiu gravemente doente: um câncer no pâncreas.
A sinfonia da sua existência alternara-se entre sustenidos e bemóis. Sozinho, pobre novamente, resolveu retornar ao morro. Lá ficou pensando consigo mesmo sobre seu Rali. O dinheiro, pensou consigo, não traz felicidade, é verdade. Ele compra a felicidade e, como um objeto qualquer adquirido num mercadinho, ela tem prazo de validade, pode vir com defeito de fabricação e, um dia, como um cristal, se espatifa no chão.
Semana passada, Ariosto teve uma piora sensível na saúde. Uma beata foi visitá-lo, aparentemente, por solidariedade cristã. Tentava disfarçar a real razão da maior parte das visitas nestas circunstâncias. A colheita de material para fofocas e comentários na redondeza e um certo sadismo típico destes momentos, alguma coisa como: “Era todo metido a besta, quero ver agora a empáfia dele com a velha da foiçona nos seus calcanhares!” Vitalina entrou com cara solene, observou atentamente o paciente moribundo no seu leito e não perdoou:
— Mas Ariosto, veja como são as coisas! Você, um pé rapado, ficou milionário de repente e agora tá aí, lascado, morre-não-morre! Tá vendo! Já vi tudo! Dinheiro não traz felicidade!
Ariosto, levantou um pouco a cabeça do travesseiro e, meio cansado, com olhos baços, fitou a fofoqueira que lhe tripudiava e sussurrou:
— É Vitalina, dinheiro não traz felicidade não! Traz nada! Pobreza é que traz uma felicidade danada!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
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