Padre Heronildo Sapupema foi designado para assumir, temporariamente, o vicariato em Matozinho, por conta de uma doença que acometeu o padre Acelino, pároco, há muitos anos, na vila. Há já alguns meses o vigário vinha em intenso sofrimento, por conta de alguns problemas de próstata que exigiram procedimento cirúrgico. Heronildo, desde a ordenação, assumira atividades religiosas na periferia da capital, nunca se enfurnara pelo interior. Comentava-se em Matozinho que a nova missão carregava consigo alguma penalidade disciplinar, devia ter aprontado alguma por lá e a nomeação, mesmo provisória, trazia consigo um certo ar de corretivo. O padre vinha meio cabreiro sabendo que, nessa terra, todo temporário é um mero disfarce carnavalesco do definitivo.
Enquanto os fiéis rezavam pela recuperação de Acelino, foram aos poucos se adaptando aos novos tempos sapupêmicos. E a coisa não teve muito sopapo nem catabi. Heronildo era tranquilo, dado e não negava fogo no trabalho. Batizados, extrema-unções, encomendações, casamentos, missas de sétimo dia e de corpo presente, confissões… para ele não tinha tempo ruim, bastava avisar e ele sempre estava a postos. Nunca também se soube de uma transgressão maior por parte do sacerdote. Ainda jovem, aos quarenta e poucos anos, não bebia, não era chegado a bermudas nem a rabo de saias, nem era um coletor compulsivo de dízimos. Usava roupas simples e, como um bom pastor, mostrava-se muito caridoso. Mas, como todo bom cristão, para não perder os raios de humanidade, o padre apresentava aquilo que podia ser apontado, à luz de um critério mais rigoroso, como um pequeno defeito. Era chegado a um carteado. No interior, então, sem opções maiores, esse vício tornou-se mais visível. À noitinha, em dias de folga, padre Heronildo juntava-se ao cassino improvisado que se reunia, também religiosamente, nos fundos do Bar do Giba. E jogo de baralho tem aquela coisa lúdica: uma partida chama a outra, os que estão ganhando não arredam cientes da sorte perene e os que estão na peia têm sempre a esperança do azar reverter e recuperarem o dinheirinho investido. As noites ficam curtas.
Dizia o povo de Matozinho que esse, certamente, era um pecado menor e, na hora de puxar a folha corrida, no outro mundo, certamente a pena, se houvesse, seria pequena. No máximo, uma pequena temporada no spa do purgatório.
O danado é que a recuperação do padre Acelino se estendeu mais do que o esperado. Seis meses depois, pareciam já evidentes os efeitos colaterais do carteado de toda noite.
Na leitura bíblica do domingo, lendo um texto de Isaías, Sapupemba, trocou facilmente o Carvalho, árvore frondosa citada no capítulo I:
“Porque sereis como o BARALHO, ao qual caem as folhas, e como o jardim que não tem água.”
Segundo os matozenses, também, na hora da Comunhão, Heronildo passou a traçar as hóstias e as lançava, de boca em boca, à distância, como se tivesse dando cartas na mesa aos incontáveis parceiros de Relancim. E quanta pontaria! Dias atrás, saiu diretamente do Bar do Giba, numa sessão de carteado que varou toda a noite, e partiu para a Igreja a fim de celebrar a missa das cinco da matina. Já meio atrasado, colocou a estola por cima da batina. Esqueceu que tinha deixado no bolso algumas fichas brancas usadas nas partidas de PIF-PAF. Na hora da consagração, ao se curvar, piedosamente, de olhos fechados, algumas caíram dentro do cálice sagrado, misturando-se com as hóstias consagradas ali postas. Iniciada a Comunhão, o padre aproximava-se das beatas e colocava nas bocas a partícula ritualística, falando solenemente:
— Corpo de Cristo!
Na fila estava D. Miralvina, uma das mais antigas beatas da cidade, piedosa, no alto dos seus noventa e cinco anos. Ela foi sorteada com a ficha do Cassino do Giba. Ao ouvir o Corpo de Cristo, Miralvina, cabeça baixa, olhos fechados, voltou ao banco e ajoelhou-se quase num transe. A partir daquele momento iniciou-se a luta pela dissolução da hóstia que teimava em não derreter. Banguela, Miralvina passeou com sua ficha por todos os cantos e recantos da boca, tangendo-a com a ponta da língua e… nada! Já suada, retornou ao altar e acercou-se do sacerdote que seguia a Eucaristia com seu mântrico: “Corpo de Cristo! Corpo de Cristo!” E falou baixinho:
— Desculpe, Padre Heronildo, mas parece que o senhor me deu foram os ossos!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
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