Todo santo dia era aquela peleja. Ariel, revolvendo-se entre lençóis e travesseiros, resistia a levantar. Ainda mais cedinho, com os olhinhos sebentos de remela e com a necessidade de entrar debaixo do chuveiro, antes de colocar a fardazinha do Jardim da Infância. Fazia-o sempre sob bocejos e protestos, como se percebesse que alguém estava-lhe sonegando os sagrados direitos da meninice: a liberdade de voar, de abraçar o mundo que se lhe defenestrava lubricamente para seu gozo e satisfação. A escola, tão prematura, afastava-o dos pais, do quintal, da peteca, da bola de gude, da rua, do carrinho de rolimã. Certo que , em troca, lhe trazia uma chusma de amiguinhos, mas todos igualmente amputados das amplas e insubstituíveis delícias da infância. A Tia era legal, cobria-o de coisas interessantes: pintar, brincar, riscar… mas o que parecia chato era aquele ar de obrigatoriedade que transformava, de repente, a mais alegre atividade em mera tarefa de escola. Mas até Ariel já se acostumara, talvez porque já não existiam mais meninos nas casas e apartamentos, o mundo estava cheinho de velhos com seus resmungos e suas queixas. A escola era o último reduto da gurizada. Agora, o que parecia difícil de se acostumar, era aquele despertar cedinho, o desajeitado escovar dos dentinhos de leite, a tortura da água no lombo, ter que tanger para longe a preguiça inesgotável dos seus seis anos de idade.
Naquele dia, sua sensibilidade de menino leu alguma coisa diferente nos olhos da mãe. Havia uma tristeza contida mas mal disfarçada que lhe vazava nos gestos, na respiração mais ofegante, no sorriso meio forçado e a meio pau. Arrumado, com a fardinha engomada a postos, tomou o mingau ainda na mamadeira, artefato que ainda não abandonara, ao menos em casa. Na escola , diante dos colegas, mostrava-se um rapazinho totalmente crescido e independente. Com a mãe chamando-o, apressada, temendo perder o horário do escritório, tomou da lancheira, pegou a alça da mochila do homem aranha e partiu para a garagem em busca da motorista que gritava :
— Vamos, Ariel , Vamos ! Já estou atrasada !
Estacou, de repente e retornou. Abriu a porta do quarto vizinho ao seu, o quarto da Vó Dina. Como fazia, toda manhã, queria, antes de partir, pedir-lhe a bênção. Diante dele a cadeira de balanço da Vó, estranhamente vazia. Ali ela passava a maior parte do dia. Pai e mãe , no trabalho, assoberbados e engolidos pelo cotidiano, a Vó tornara-se a figura mais presente na vida de Ariel. Enquanto fazia crochê, diligentemente na sua cadeira, acompanhava o neto que se esbaldava no quarto, depois da volta da escola, e só parava quando Dina passava a lhe contar as mais fabulosas estórias de Trancoso: o “Cumpade Foiará” , “O Gato de Botas”, “As travessuras de Senhor Reis”. Ariel observou desapontado a cadeira vazia. Lembrou que a mãe tinha contado que Vovó tinha adoecido e estava no hospital tomando remédio, imaginou que já devia ter voltado. A mãe, apressada, dando pela demora do filho, veio da garagem ao seu encontro. Deu com o menino, triste, olhos fitos na cadeira de balanço que já não mais balançava.
— Mãe, cadê Vovó ? Ela ainda tá no hospital ?
Estática, como uma presa diante do predador, ela se conteve procurando palavras para explicar que a Vó, agora, tinha virado uma estrelinha e que quando ele visse uma delas riscando o céu, ela era que estava puxando seu fio de crochê. Ariel, sempre tão pronto e atilado, pareceu confuso , como se alguém tivesse lhe roubado a bolinha de meia. E agora, com quem ficaria brincando à tarde ? Quem lhe contaria as histórias que Vó Dinda contava ?
Antes de sair, foi até à janela , olhou para o azul do céu, como se procurasse um ponto fixo no horizonte. Estendeu a mão para o infinito como se agarrasse a ponta do fio invisível do crochê cujo novelo estava longe, bem longe , levado por um Gato sem Botas, por um Rei sem Reino, por um Compadre agora desfolhado:
— À benção, Vó !
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri