A equipe da CPI da Covid que auxilia o relator da comissão, senador Renan Calheiros (MDB-AL), fez uma cronologia e já levantou mais de 200 momentos em que Jair Bolsonaro (sem partido) propagou discurso negacionista na pandemia de janeiro de 2020 ao mesmo mês deste ano.
O compilado, obtido pela Folha, inclui frases do presidente em que ele critica o isolamento social, propagandeia o uso da hidroxicloroquina contra a Covid-19 e minimiza o coronavírus, chegando a chamá-lo de “gripezinha”.
O discurso do mandatário será um dos alvos de investigação da CPI. O objetivo é usar declarações e ações para eventualmente imputar crimes ao presidente ao fim dos trabalhos. Advogados avaliam que há ao menos quatro que podem ser atribuídos aos discursos.
O plano de trabalho apresentado na quinta-feira (29) por Renan elenca seis linhas de investigações que serão conduzidas pelos membros da comissão, sendo a primeira delas as ações do governo no enfrentamento da pandemia.
O tópico tem potencial para atingir o governo Jair Bolsonaro, já que trata das medidas consideradas mais polêmicas por envolverem discursos negacionistas.
A comissão vai investigar, por exemplo, as medidas tomadas para promover o isolamento social —do qual o presidente é crítico— e para a aquisição e distribuição de vacinas e insumos, que tardaram a serem comprados e entregues no Brasil.
Senadores querem entender se Bolsonaro deliberadamente agiu para que o vírus circulasse no país na tentativa de provocar a imunidade de rebanho.
Os dados serão explorados nos depoimentos —na semana que vem, três ex-ministros da Saúde serão ouvidos (Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello), assim como o atual, Marcelo Queiroga.
Convocados na CPI da Covid
• Luiz Henrique Mandetta (terça-feira, 04.05)
• Nelson Teich (terça-feira, 04.05)
• General Eduardo Pazuello (quarta-feira, 05.05)
• Marcelo Queiroga (quinta-feira, 06.05)
• Antonio Barra Torres (quinta-feira, 06.05)
A primeira declaração de Bolsonaro sobre a pandemia identificada no levantamento da CPI tem data de 26 de janeiro de 2020. A OMS (Organização Mundial de Saúde) ainda não havia decretado a pandemia, mas já alertava os países para os perigos da disseminação do vírus.
“Estamos preocupados, obviamente, mas não é uma situação alarmante”, disse o presidente naquele dia.
O primeiro caso de coronavírus no Brasil foi registrado em 27 de fevereiro. Dias depois, em 9 de março, Bolsonaro voltou a minimizar os efeitos do coronavírus: “Tem a questão do coronavírus também que, no meu entender, está superdimensionado, o poder destruidor desse vírus”.
No final de fevereiro, Bolsonaro chegou a enviar vídeos a aliados e convocou a população a participar de protestos em favor de seu governo.
Alertado sobre os perigos de provocar aglomerações, o presidente ainda ensaiou uma moderação do tom depois da pressão de aliados e disse, num pronunciamento em cadeia de rádio e TV, que os atos, embora “legítimos”, deveriam ser repensados em razão da pandemia.
As manifestações, porém, ocorreram e Bolsonaro saiu do isolamento e foi à frente do Palácio do Planalto cumprimentar apoiadores.
Em 18 de março, um dia após a primeira morte por Covid-19 no país, o presidente negou que tenha causado aglomeração e justificou a atitude.
“Eu como chefe do Executivo, o líder maior da nação brasileira, tenho que estar na frente, junto do meu povo. Não se surpreenda se você me ver, nos próximos dias, entrando no metrô lotado em São Paulo (SP), entrando numa barcaça na travessia Rio-Niterói em horário de pico; ou num ônibus em Belo Horizonte (MG). Longe de demagogia e de populismo. É uma demonstração de que eu estou do lado do povo, na alegria e na tristeza”, disse o presidente.
A partir de então, Bolsonaro aumentou o tom das críticas a governadores e prefeitos que decretavam medidas de isolamento social e promoviam o fechamento de aeroportos e estradas.
Foi também em março que o mandatário passou a propagar fortemente o uso da hidroxicloroquina como tratamento para a Covid-19.
“Agora há pouco, os profissionais do hospital Alberto (sic) Einstein me informaram que iniciaram protocolo de pesquisa para avaliar a eficácia da cloroquina nos pacientes com Covid-19. (…) Tenhamos fé que em breve ficaremos livres desse vírus”, afirmou, em 21 de março do ano passado, segundo registro da CPI.
As atitudes tomadas pelo governo nos primeiros meses da pandemia são consideradas por parlamentares como cruciais para a alta de casos que foi registrada a seguir. Por isso os senadores consideram relevante o depoimento que Mandetta, ex-ministro da Saúde, prestará na próxima terça-feira (4).
Ainda naquele mês, no dia 24, Bolsonaro fez novo pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV no qual menosprezou a doença.
“Nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho”, disse o presidente.
Semanas depois, em 12 de abril, o Brasil registrava 22.169 casos confirmados da doença e 1.233 óbitos.
Naquele dia, Bolsonaro afirmou que a pandemia estava amainando. “Quarenta dias depois, parece que está começando a ir embora a questão do vírus, mas está chegando e batendo forte a questão do desemprego”, afirmou em 12 de abril do ano passado em uma live com religiosos. Naquele momento, como mostrou a Folha à época, a declaração do presidente contrariava a projeção de especialistas.
O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), membro suplente da CPI, confirma que a retórica do presidente vai ser um dos alvos da investigação.
“É preciso materializar todas as condutas referentes à atuação do governo federal em face da pandemia, independente do autor da conduta”, afirmou.
A CPI em cinco pontos
• Foi criada após determinação do Supremo ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG)
• Investigará ações e omissões de Bolsonaro na pandemia e repasses federais a estados e municípios
• Terá um prazo inicial (prorrogável) de 90 dias para realizar procedimentos de investigação
• Relatório final será encaminhado ao Ministério Público para eventuais criminalizações
• É formada por 11 integrantes, com minoria de senadores governistas
O professor da Faculdade de Direito da USP Rafael Mafei afirma que Bolsonaro pode ser responsabilizado de duas formas, sendo que uma delas está diretamente ligada ao seu comportamento. Em primeiro lugar, afirma que ele pode ser acusado de atentar contra o direito à saúde dos brasileiros, o que configuraria um crime de responsabilidade.
“O outro crime é a quebra de decoro: o presidente ultrapassa os limites que deveria guardar em seu comportamento em suas palavras. Ele tem muito poder e capacidade de influenciar as pessoas, então, ao falar que foi salvo pela cloroquina, ele pode estar cometendo crime”, afirma o professor.
“A retórica pessoal do presidente é nitidamente a quebra de decoro” completa. Ambos os crimes citados são de responsabilidade e podem ensejar pedidos de impeachment.
Fonte: Folhapress