Naquele dia, na praça da matriz de Matozinho, chegou a novidade da morte do Príncipe Phillip, lá prás bandas da Inglaterra. Um lugar longe, do outro lado do mundo, onde Judas pode ter encontrado as esporas. Deve ser de Serrinha de Nicodemos pra lá, umas trinta léguas, calculou alguém. Monteiro, um mascate que rodava o mundo no seu bólido asinino, trouxe a notícia. O homem tinha batido as botas, já perto de inteirar um século e explicava com sua voz empostada e metálica de vendedor:
— É que rico é bicho pouco morrente, meu senhor! A vida toda só comendo e bufando, sem dar um prego numa banana! Tomando mingau na boca, levantando meio dia… Uma ruma de besta ao redor, lambendo e adulando o Zé Mané! Queria ver aqui: desgotando fossa, puxando cobra pros pés, cambitando cana no eito… O mofino num aturava dois anos!
O certo é que, diante da notícia de um velório tão raro, o povo se assanhou como maribondo de chapéu sojigado por caco de telha. Ninguém nunca na vida tinha sabido de morte de príncipe e de rei, tirante o de Dom Ribamar, um doido que perambulava pelas ruas de Matozinho e se arvorava de Rei de Bertioga. Ali, invariavelmente, quando o cristão botava pra entregar a alma ao criador, os amigos e vizinhos empreendiam uma vigília, acompanhando o sofrimento do padecente até que ensebasse o capim. Depois vinha o velório de um dia para o outro, regado em geral a cachaça e caldos, com trilha sonora de mântricas incelenças, sob o choro convulsivo de familiares, geralmente entoado em notas agudas, com um a dois oitavos acima da escala. O enterro se arrastava como uma cobra de cipó, veredas abaixo, com o defunto estirado na sua rede trespassada por uma longa estaca de sabiá. Parentes carpiam e gemiam alto: o volume era essencial para os outros compreenderem o tamanho da sua perda. Os acompanhantes, no percurso, faziam via sacra nas bodegas, completando o tanque que já vinha mais ou menos esborratando do velório. No caso de um cabra metido a besta como esse tal de Príncipe Filipe (ninguém conseguia dizer a proparoxítona meio trava língua: Phillip), como diabos era o tal do enterro? Os matozenses queriam saber, até para refinarem os costumes da vila, reformularem os manuais de etiqueta e postura matozenses.
Alguém, na praça, lembrou que Pedro Gogó de Sola, um camelô da cidade, ia para capital no dia seguinte, fazer uma compras. Como em Matozinho não se sabia o que era televisão, pediram a Pedro para ver se assistia , por lá, ao tal do enterro do homem, em alguma TV e, na volta, como um bom repórter, poderia contar a todos os detalhes do funeral. Gogó, assediado, aceitou a incumbência. Mas impôs uma condição: no dia que fosse fazer o seu relato, na praça, exigia um litro de cana de cabeça, pra folgar mais os parafusos e as ruelas da memória.
Gogó de Sola partiu na sopa de Duzentos, no dia seguinte, e deixou a cidade ansiosa e cheia de sobrosso. E o pior é que demorou mais do que o previsto. A promessa era tornar no dia seguinte. Só uma semana depois ele deu o ar da sua graça. Quando Pedro botou o pé novamente em Matozinho a boa nova se espalhou como fofoca sobre moça desvirginada. Rápido, os chefes das rodinhas da praça procuraram Gogó e marcaram a leitura do Relatório Final do enterro do Príncipe Filipe para ser apresentado no finalzinho da tarde, na praça da matriz.
Umas quatro horas, o sol já a meio pau, Gogó chegou na pracinha e ocupou a testeira de um dos bancos que, àquelas horas, dava sombra. Umas cinquenta e tantas pessoas aguardavam o repórter: homens, mulheres, meninos. Na parte debaixo do banco foi colocado, como combinado, um litro da cachaça de cabeça “Consola Corno”, destilada no engenho do major Anfrízio Maia, um copo de fundo grosso e uma coité com uns dez cajuís. Depois de umas duas talagadas e a mordida na fruta, por fim, Gogó de Sola, com voz tonitruante como se estivesse oferecendo “Pomada do Peixe-Elétrico”, começou a contar sua história.
— Eu assisti, ontem, sábado o enterro do tal Príncipe Filipe! Só cheguei hoje porque tive de esperar de butuca por quase uma semana: o povo quase num leva o homem pra cova. Oito dias de velório! Onde já se viu? Pelos minhas bausas, só de Caldo de Carne, devem ter gastado pra mais de 600 litros. Gastaram vela que dava pra umas quinhentas procissões aqui em Matozinho. Ô povo exagerado! E o véi quase num bate as bota, tava mais enrugado do que maracujá de gaveta. E o enterro foi a coisa mais desmantelada que já vi, parece até que foi organizado pelo Prefeito Sinderval Bandalheira. Botaram o caixão do homem num Jeep velho, coberto com uma lona igual a que dona Vitalina cobre as mesas nas quermesses. Na frente colocaram um monte de soldado, cada um mais desmantelado que outro. Uma ruma de baitola vestido de saia e tocando uns foles véio e o som que saía dos bichos parecia os de um gato quando a gente pisa no rabo . Outros vinham com uns cupins enormes na cabeça. Uma marmota. A rainha vinha atrás, com um chapéu de massa atolado até as orelhas e nem tava de luto. Nem uma lágrima a viúva soltou, nem um gemido, capaz de ter sido ela quem deu o chazinho da meia noite pro Filipe. Seguindo o caixão, vinha um povo de paletó, com cara de importante, com um passinho lento de quem toma chegada para atirar em passarinho. De repente, um estrondo danado, disseram que uns soldados largaram fogo nuns canhão, coisa de quebrar os vidros da igreja. Vai ver que os abestado tavam pensando que aquilo era festa de São João. Ninguém desmaiou, ninguém gritou, num teve uma incelença. Pobre do Filipe, a família tava achando era bom, deve ter deixado pé de meia, viu?! Só uma coisa achei bom: toda vida, me contaram, Filipe tinha que andar atrás da mulher dele, a rainha. Já pensou como o pobre era sojigado, um barriga branca? Pois bem, agora eu quero é ver, viu, sua rainha véia metida a besta, dessa vez ele foi na frente!
No meio da roda principal, uma mulher quis saber como diabo é que fizeram pra sustentar o defunto no caixão por sete dias e num baixar urubu. Antes que Gogó de Sola tentasse arrancar alguma justificativa para aquela mumificação, Chico Magarefe, o principal abatedor e vendedor de criações de Matozinho, rapidamente matou a charada:
—- Oxe! Tem mistério, não! Só tem um jeito: sargaram o véi Filipe!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri