Ao reclamar sobre a atuação da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) na investigação do caso de Adélio Bispo, autor do atentado à faca do qual foi alvo, o presidente Jair Bolsonaro disse que poderia explicar ao presidente da entidade, Felipe Santa Cruz, como o pai dele desapareceu durante a ditadura militar (1964-1985).
“Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB? Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele.”
“Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro”, disse Bolsonaro.
Felipe é filho de Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, desaparecido em fevereiro de 1974, após ter sido preso junto de um amigo chamado Eduardo Collier por agentes do DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura militar, no Rio de Janeiro.
Fernando era estudante de direito e funcionário do Departamento de Águas e Energia Elétrica em São Paulo e integrante da Ação Popular. Felipe tinha dois anos quando o pai desapareceu.
No relatório da Comissão Nacional da Verdade, responsável por investigar casos de mortos e desaparecidos na ditadura, não há registro de que Fernando tenha participado da luta armada.
O documento, inclusive, ressalta que Fernando à época do seu desaparecimento “tinha emprego e endereço fixos e, portanto, não estava clandestino ou foragido dos órgãos de segurança”.
O presidente da OAB disse que vai ao STF (Supremo Tribunal Federal) para que Bolsonaro esclareça as informações que diz ter a respeito da morte de seu pai. As circunstâncias do seu desaparecimento nunca foram esclarecidas pelo Estado.
“Se o presidente tem segredos no porão da ditadura, é hora de contar”, afirmou Santa Cruz à Folha.
Ainda sobre o caso de Adélio, Bolsonaro disse que ele “se deu mal”.
“Adélio se deu mal. Eu não recorri porque se recorresse ele seria julgado não por homicídio, mas tentativa de homicídio, em um ano e meio ou dois estaria na rua. Como não recorri, agora é maluco o resto da vida. Vai ficar num manicômio judicial, é uma prisão perpétua. Já fiquei sabendo que está aloprando por lá. Abre a boca, pô”, afirmou.
Sem manifestações de Bolsonaro e do Ministério Público Federal (MPF) em Minas Gerais, a 3ª Vara Federal de Juiz de Fora encerrou o caso.
Bolsonaro foi intimado no dia 28 de junho sobre a decisão e não recorreu. O MPF já havia sido intimado no dia 17 daquele mês. O prazo para recursos se esgotou em 12 de julho.
Na decisão, o juiz responsável diz que a investigação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal não deixa dúvidas sobre a autoria do crime.
Mas, como o réu tem transtorno mental e é considerado inimputável, o magistrado decidiu pela absolvição imprópria —quando uma pessoa é declarada culpada por um delito, mas não tinha capacidade de entender o que estava fazendo quando cometeu o ato— e internação por medida de segurança.
Segundo a Lei de Execuções Penais, nesses casos o preso deve ser encaminhado a hospitais de custódia para receber tratamento psiquiátrico.
O juiz, porém, optou por manter Adélio no presídio federal de Campo Grande. Medidas de segurança não têm prazo determinado, e o preso depende da alta de um médico para que seja liberado.
Repercussão
O governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B), disse nesta segunda repudiar declarações do presidente sobre o desaparecimento do pai do presidente da OAB.
Dino, que participava de uma reunião dos governadores do Nordeste em Salvador, classificou a fala do presidente como execrável, por “evocar um ato de tortura e desaparecimento”.
“É realmente impactante, chocante e execrável sob todos os aspectos a declaração sobre o presidente do Conselho Federal da OAB […] Um dano familiar tão grave não deve ser evocado por ninguém em nome de interesses políticos”, disse o governador.
Dino ainda afirmou que as declarações de Bolsonaro configuram “uma gravíssima agressão familiar e pessoal” e refletem um método adotado pelo mandatário. “Esperamos que o presidente abandone essa postura.”
Quem foi Fernando de Santa Cruz Oliveira
Militante da Ação Popular Marxista-Leninista, dissidência da Ação Popular, grupo de esquerda formado pela juventude católica em 1962, o pai do atual presidente da OAB foi visto pela última vez por seus familiares em 23 de fevereiro de 1974, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Fernando de Santa Cruz Oliveira havia saído de casa para encontrar um amigo de infância e havia dito à família que, caso não voltasse até as 18 horas daquele dia, “provavelmente teria sido preso”.
A Comissão Nacional da Verdade, criada pelo Estado para fazer um registro oficial dos crimes do regime militar, relata que Fernando e seu amigo —Eduardo Collier Filho, também militante contra a ditadura— provavelmente foram presos por agentes do DOI-Codi no Rio.
O relatório narra a partir daí o esforço dos familiares dos dois para descobrir, sem sucesso, o paradeiro de Fernando e Eduardo.
A mãe de Fernando chegou a ir ao quartel-general do 2º Exército, em São Paulo, quando recebeu a informação, de um agente do local, de que seu filho e Eduardo estavam naquelas dependências. Ao retornar, pouco dias depois, recebeu de outro funcionário uma informação diferente: a de que ocorrera um equívoco e que Fernando e Eduardo não estavam no 2º Exército.
Os familiares seguiram com as buscas, ainda de acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade. Foram enviadas cartas ao comandante do 2º Exército e ao general Golbery do Couto e Silva, que em março de 1974 assumiu a chefia da Casa Civil do governo Ernesto Geisel.
A família recebeu uma resposta do 2º Exército, que negou que Fernando estivesse preso desde fevereiro de 1974 em “qualquer dependência” da instituição [2º Exército].
O texto da Comissão da Verdade também revela que a família escreveu cartas à primeira-dama dos Estados Unidos, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a dom Helder Câmara, entre outras pessoas influentes.
O regime militar disse, em resposta à CIDH, que Fernando estaria vivendo na clandestinidade.
Apesar da versão oficial, a Comissão da Verdade cita um documento de 1978 no qual o Ministério da Aeronáutica reconhece que Fernando foi preso em fevereiro de 1974.
“Já na década de 1990, o Relatório da Marinha enviado ao então ministro da Justiça, Maurício Corrêa, em dezembro de 1993, informava que Fernando teria sido preso no dia 23 de fevereiro de 1974, sendo considerado desaparecido desde então”, acrescenta o relatório.
Elzita Santa Cruz, mãe de Fernando, virou um símbolo da busca por desaparecidos na ditadura. Ela morreu em junho, aos 105 anos, sem uma resposta para a pergunta que mais repetiu durante a vida: “Onde está meu filho?”
A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos emitiu no último dia 24 um atestado de óbito de Fernando, no qual informa que ele morreu em 1974 de forma “violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial. Esse tipo de declaração é considerado uma reparação moral, equivalendo ao reconhecimento da culpa do Estado.
O ex-policial civil Cláudio Guerra disse, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, que Fernando foi morto quando estava sob a guarda do Estado brasileiro. Ele afirmou que o corpo do ex-estudante foi incinerado junto com o de outras vítimas da ditadura que haviam sido mortas por militares em Petrópolis (RJ) e no Rio. Essa versão também foi apresentada por um ex-militar.
Fonte: Folha.com